5.5.06

Teoria do conhecimento


Teoria della Conoscenza, de Nicla Vassallo.
Roma-Bari, Laterza, 2003, 164 pp.

Um dos ramos mais antigos e fascinantes da filosofia é a teoria do conhecimento. Sempre aberta a problemas e apoiando-se em terreno movediço, não teme explorar novos horizontes e suscitar incômodos questionamentos em áreas supostamente sólidas. Por isso mesmo é difícil encontrar alguma obra que, sem desprezar o rigor, trate-a com clareza didática e objetividade. Teoria della conoscenza, de Nicla Vassallo, preenche essa lacuna em livro que não deveria ficar restrito aos leitores italianos, merecendo tradução em língua portuguesa, já que poucas obras enfocam esse tema no Brasil e em Portugal, onde a filosofia parece se reduzir à história da filosofia.

Interessada tanto na história quanto nas teorias que exploram a epistemologia, a metafísica e a filosofia da ciência, a autora traça, em linguagem enxuta, um panorama razoavelmente abrangente da teoria do conhecimento, tema que começou a estudar no King's College de Londres, no início dos anos 90. É mérito seu apresentar as diversas teorias sem tomar partido, mas sem deixar, também, de apontar os principais problemas de cada uma delas (e todas, claro, podem ser alvo de tiro).

O livro se divide em três amplos capítulos que, partindo da idéia de conhecimento (em que se analisa a diferença entre aparência e realidade, as noções de verdade, os tipos de conhecimento e suas fontes, com destaque para o valor do "testemunho", em geral pouco considerado), aborda os principais problemas da teoria do conhecimento (notadamente a questão da justificação), concluindo com o exame de algumas posições mais recentes, em geral propensas ao relativismo. Encerra o livro a indicação, relativa a cada um dos capítulos, de leituras complementares para o aprofundamento do assunto, seguida de uma extensa e informativa bibliografia.

Quanto aos tipos de conhecimento, que alcançamos através de fontes como a percepção, a racionalidade, a memória, a inferência lógica e o "testemunho", Vassallo dedica mais atenção, como não poderia deixar de ser, ao conhecimento proposicional, sem esquecer o conhecimento direto (ex.: "conheço Virgínia") e o conhecimento por habilidade (ex.: "sei andar de bicicleta"). Supondo-se que S seja um sujeito cognitivo qualquer e p uma proposição qualquer, eis a formulação clássica de conhecimento:

S sabe que p se e somente se:

1) p é verdadeira,
2) S crê que p seja verdadeira, e
3) a crença de S em p é justificada.

Trata-se da análise tripartida — retomada a partir dos anos 60 por autores ingleses e norte-americanos —, que define o conhecimento como crença verdadeira justificada. Verdade, crença e justificação são, portanto, três condições necessárias para que se tenha conhecimento. A estes requisitos algumas teorias acrescentam outros, particularmente no que diz respeito à justificação. É o caso do coerentismo — defendido por Sellars e Davidson, entre outros —, que sustenta que "uma crença é justificada se e somente se adere coerentemente ao sistema de crenças de que faz parte". Essa posição, segundo Vassallo, é pouco satisfatória, correndo o risco de conduzir a um círculo vicioso (uma crença c1 obtém a própria justificação numa crença c2, que por sua vez obtém justificação numa crença c3... que é justificada na crença Cn, que, enfim, obtém justificação na crença c1).

A posição rival é o fundacionalismo (enraizado em Aristóteles, Descartes, Locke, Russell e outros), que divide as crenças em básicas e derivadas: as primeiras são justificadas imediatamente, enquanto as derivadas obtêm justificação inferencialmente a partir das primeiras. A objeção mais conhecida ao fundacionalismo tem por alvo a crença de base. Nenhuma crença básica é justificada, recorda Vassallo, porque aquilo que poderia justificá-la é, igualmente, uma crença. O fundacionalismo, assim, acaba sendo "incapaz de enfrentar o problema do regresso, que motiva a sua própria existência".

Ainda relativamente ao problema da justificação, a autora prossegue analisando o fiabilismo (preconizado por Plantinga), o naturalismo (defendido por Quine e Goldman, que sustentam a idéia de que a teoria do conhecimento deve se apoiar nas ciências) e os históricos desafios do ceticismo, a que já procuraram responder, por exemplo, o racionalismo cartesiano, o empirismo de Moore, a filosofia de Wittgenstein e, mais recentemente, Robert Nozick, que mostra uma certa abertura para as teses céticas, sem, contudo, tornar-se ele próprio um cético.

No último capítulo, Vassallo aborda algumas contribuições mais recentes, como o contextualismo e o feminismo. O primeiro, embora não relativizando a noção de verdade, afirma que a justificação é relativa ao contexto em que está situado o sujeito do conhecimento. O segundo é mais radical em seu relativismo: o sujeito cognoscente de que trata a teoria clássica do conhecimento teria assumido, no decorrer dos séculos, "as características do homem branco, ocidental, heterossexual, de cultura elevada, de boa posição social" etc. Revalorizando o conhecimento direto e o conhecimento por habilidade, o feminismo contesta as várias tentativas clássicas de oferecer uma definição plausível de conhecimento proposicional, posto que estas buscam, exatamente, estabelecer condições para o conhecimento e para a justificação válidas para qualquer sujeito. Essa "ótica particularista" suscita não poucas perplexidades. Ainda que identificando alguns pontos positivos nas teorias feministas, a autora ressalta que a aceitação do particularismo conduz a uma pergunta incômoda: por que não incentivar também a construção de uma teoria do conhecimento dos negros, dos anciãos, dos jogadores, dos fumantes, etc.?

Ciente de que a aspiração ao conhecimento faz parte da natureza humana, constituindo o próprio "paradigma de nossa existência", Nicla Vassallo fecha o livro com a seguinte observação: "se admitimos que é de nossa natureza não ser brutos, mas conduzir uma existência epistêmica, então devemos admitir que a teoria do conhecimento nos garante, com suas análises precisas e iluminantes, uma existência mais consciente e clara". Parece pouco, mas é o que nos torna mais humanos.
Orlando Tambosi
(Publicado originalmente na revista eletrônica Crítica, de Lisboa.)