24.3.07

Liberdade, direito, justiça e propriedade.


Colaboração de C. Mouro (19-03-2007)

Os clássicos liberais não se resumiam a defender a liberdade econômica, mas sim a liberdade, inclusive econômica. A idéia de liberdade, como já tantas vezes tentei explicar minha visão em textos longos e curtos, não pode se dissociar da idéia de direito e esta não se dissocia da idéia de justiça. Ou seja, a liberdade é um direito do indivíduo por ser justa, e justa é a igualdade de direitos individuais, de ação e reação (não é igualdade de resultados). Assim, se todos tem direito à liberdade, é a idéia do direito que permitirá equacionar a questão de modo que todos possam ser igualmente livres. De modo que o direito de um a algo nega a todos os demais o direito a esse algo ao mesmo tempo. Assim, tem-se o direito de propriedade e o direito de uso. De modo que propriedade é o direito permanente sobre algo e o de uso é o direito provisório. Explicando para evitar aporrinhadores parvos: um banco de praça é do direito de todos, porém ninguém tem direito de exigir que outro se levante para ele sentar, pois o primeiro está exercendo seu direito de uso, negando-o aos demais. A propriedade é um direito permanente sobre algo. Direito este reconhecido como justo ante um exame lógico da situação ou obtido mediante uma contrapartida acordada com quem o detém ou mediante critérios estabelecidos sem ferir qualquer direito alheio existente sobre algo.

A liberdade individual é um direito reconhecido mediante a percepção de que o arbítrio não se pode generalizar como critério, pois cada um poderia arbitrar em contrário a outros. Assim, a idéia de direito individual há que ser equânime, não podendo nela haver reivindicação de privilégio de qualquer ordem, pois tal atribuição se poderia dar por critérios arbitrários, de modo que qualquer indivíduo poderia reivindicar estabelecer os critérios, numa situação em que apenas a força maior seria capaz de arbitrar critérios da mesma forma que poderia arbitrar o próprio direito; ou seja, subjetivamente. Contudo, se o direito se pretende objetivo há que desprezar o arbítrio e partir da idéia de que cada indivíduo tem o mesmo direito de agir e reagir, sendo do seu direito o que advém de sua ação; também de seu direito é transferir seu direito a outros espontaneamente, cedendo aquilo que está no âmbito do seu direito. Ou seja, a liberdade como direito absoluto sobre si, é o pleno direito de propriedade sobre o próprio* corpo, considerando-se que mente e corpo não se podem separar, a mente é proprietária do corpo: o indivíduo. Esse direito sobre si presume responsabilidade pelas decisões concretizadas nas ações, não sendo cabível qualquer pleito para contestar decisões racionalmente concebidas ante a clareza dos fatos. Pois tal pleito levaria a julgar que o indivíduo é incapaz para a liberdade, devendo ficar sob a responsabilidade alheia, ou sob as decisões alheias, já que incapaz.

A idéia de liberdade, como inúmeras vezes já formulei, deriva do método lógico: um indivíduo solitário no mundo tem por direito o que lhe arbitrar a própria vontade. De modo que somente a natureza e seres irracionais poderiam se opor a sua vontade (estes incapazes de raciocínio que reconheça o direito alheio: capazes apenas de aprender e não descobrir por simulações mentais. Ou seja, podem apreender o direito como arbítrio que lhe é revelado por autoridade que admite a si superior). Seria idiota dizer que acidentes geográficos ou animais cerceiam o direito do indivíduo, ou a sua liberdade, pois se estaria com isso entendendo o direito como potência realizadora ou vontade concretizada, e não como liberdade do indivíduo para exercer sua capacidade natural ou por ela adquirida. Ou seja, direito não é a capacidade de realizar, mas sim a possibilidade de usufruir de suas potencialidades natas ou adquiridas pelo exercício destas. Assim, para o homem só no mundo, apenas os animais e acidentes geográficos podem impedi-lo de realizar sua vontade segundo seu potencial nato ou adquirido mediante uso deste, e isso não limita seu direito, pois apenas o direito alheio poderá faze-lo, e tem direito apenas quem é capaz de reconhecer e respeitar o direito alheio – justa é a reciprocidade.

Diante do exposto, pode-se perfeitamente entender que a existência de outro indivíduo com o mesmo direito do primeiro levaria a uma possível interseção nos domínios da vontade de cada um. Sendo assim, a idéia de direito passa(deveria) a estabelecer critérios racionais para reconhecer o direito dos indivíduos de modo a que tais interseções não ocorram. Pois que:

onde há ambiguidade não há verdade;
onde não há verdade não há justiça(*1);
onde não há justiça não há direito;
onde não há direito não há liberdade.

Ou seja, o arbítrio jamais produzirá justiça senão por mera coincidência. Assim, podemos perceber que a Liberdade de um indivíduo só pode ser violada por outro indivíduo, e não por animais ou ação da natureza. E desta forma, o direito de um indivíduo a algo PROÍBE direito dos demais a este algo ao mesmo tempo. Permitindo assim perceber que LIBERDADE É AUSÊNCIA E NÃO PRESENÇA: É AUSÊNCIA DE USURPAÇÃO, OPRESSÃO E COERÇÃO.

Liberdade é o usufruto pleno do direito, é poder tudo sobre si, afinal o primeiro direito do indivíduo é a propriedade plena sobre seu *próprio corpo e tudo mais que da ação física ou mental deste for produzido. Desta forma, somente o próprio indivíduo pode justamente assumir obrigações (obriga ação) para com outros através de acordos (acordos criam obrigações morais objetivas – não são obrigações morais subjetivas/achistas).

Portanto, líderes, mentores ou lá o que for, não podem, sob a idéia da justiça, atribuir obrigações a nenhum indivíduo que antes não as tenha assumido. Logo, não podem atribuir direitos de uns sobre outros seja lá sob que pretensos “fins supremos” possam alegar; nem em nome da pátria, nem de deus, nem da solidariedade nem de porra nenhuma!

Obs.: (*1) – Julgamentos baseados em mentiras não poderão ser justos. Assim, podemos ver que o princípio das idéias de liberdade pode ser identificado como APENAS UM: que a liberdade é inalienável direito de todo indivíduo. (...e precavendo dos imbecis, ressalto: um indivíduo deve ser livre até para escravizar-se a outro, pois se assim se entrega livremente, não será escravo, pois exercendo a própria vontade sobre o que lhe é de direito. Por mais que outros possam entender a submissão voluntária como escravidão – Essa questão é muito mais importante do que se possa imaginar, desconsidera-la pode levar a submissão involuntária).

(Ilustração: "Pássaros no ar", Rebecca Barker).

21.3.07

O bebê e a água do banho

Publicado na Folha de São Paulo, edição de 21/03/2007.

EM ARTIGO intitulado "Procurando Rousseau, encontrando Chávez" ("Tendências/Debates", 7/3), opinei que a eventual implantação da reforma política sugerida ao governo pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) teria conseqüências nefastas. Meu texto suscitou algumas reações iradas e um substancioso comentário do professor Fábio Konder Comparato, fervoroso defensor do projeto, neste mesmo espaço da Folha ("Quem tem medo do povo?", 13/3).
Realmente, minha expectativa era que a OAB, com sua inegável autoridade, apontasse soluções realistas para os problemas de organização institucional que nos vêm há muito tempo afligindo, em particular o esvaziamento do Poder Legislativo, tema que obviamente envolve as questões éticas dramatizadas nos últimos dois anos e se estende aos partidos políticos e ao sistema eleitoral, entre outros aspectos. Infelizmente, o projeto OAB/Comparato optou por jogar fora o bebê com a água do banho. Descrendo quase totalmente da democracia representativa, o texto restringe drasticamente o espaço da representação e propõe um modelo que, à falta de melhor termo, eu denominaria "cesaro-anarquismo", um híbrido de princípios opostos, ambos levados ao paroxismo. Como seria a operacionalização prática de tal concepção?

Primeiro, o projeto eleva o arbítrio do Poder Executivo à enésima potência, conferindo ao presidente da República a prerrogativa de convocar plebiscitos sem ouvir o Congresso Nacional. Ora, a soma de poderes já atualmente concentrados no Executivo é de causar arrepios a quem quer que preze o equilíbrio e a independência mútua das instituições no regime democrático.
Para quebrar a espinha do Poder Legislativo, ele conta com as medidas provisórias; para desvitalizá-lo, com o Orçamento autorizativo; para humilhá-lo, com aquele "milhozinho" distribuído por meio de emendas parlamentares individuais. Para sufocar a economia e a capacidade privada de iniciativa, ele dispõe de numerosos instrumentos, desde logo o gasto público e a correspondente carga tributária, cujos níveis e qualidade atuais me dispenso de comentar.
Mas isso não é tudo.
Sem cometer a tolice de debitar tantos problemas na conta do atual governo, observo que o presidente Lula inicia seu segundo mandato com obedientes três quartos ou mais de apoio na Câmara, aliados carnais nas presidências da Câmara e do Senado e lúcida simpatia por parte dos governadores. E, aparentemente, já cogita se reforçar na área das comunicações, por meio de uma TV estatal.
No sentido oposto, o projeto institui a intervenção popular no processo decisório numa escala jamais praticada em nenhum país, por meio do chamado recall (revogação de mandatos por votação popular), instrumento não desprovido de lógica se aplicado em pequenas circunscrições eleitorais, com base no voto distrital puro, a fim de revogar mandatos de parlamentares, caso a caso. Mas a fórmula alvitrada pela OAB e pelo dr. Comparato vai muito além disso. Referendos revocatórios poderiam ser obrigatoriamente convocados pelo voto da maioria da Câmara ou mediante abaixo-assinados subscritos por 2% do total de eleitores. Para revogar qual ou quais mandatos? Resposta: todos. Tal engrenagem poderia ser acionada e mandar para casa, simultaneamente, todos os deputados e o próprio presidente da República (!) uma vez decorridos 12 meses das respectivas eleições. Nesse aspecto, é preciso convir que o egrégio colegiado da OAB operou prodígios. Transformou a antiquada espingardinha do recall numa "cortadora de margaridas", a temível "daisy cutter" que os americanos andaram despejando nos confins do Afeganistão.
Li e reli as ponderações do dr. Comparato com a atenção que merecem, mas não consegui exorcizar meus receios. Com a melhor das intenções, "ça va sans dire", o que o projeto me parece recomendar é um Executivo dotado de poderes ainda maiores que os atuais, com o contrapeso fiscalizador de um Legislativo reduzido à condição de pedinte andrajoso. Temo, realmente, que tais idéias desemboquem num populismo autoritário semelhante ao regime "bolivariano" do coronel Hugo Chávez, cujos supostos avanços democráticos recebem, aliás, rasgado elogio na justificação da proposta.

BOLÍVAR LAMOUNIER, 63, doutor em ciência política pela Universidade da Califórnia, Los Angeles (EUA), é consultor de empresas. É autor de, entre outras obras, "Da Independência a Lula: Dois Séculos de Política Brasileira" (Augurium Editora, 2005).