4.3.06

As origens do jornalismo


Na ilustração, uma das primeiras impressoras (Fonte: biografiasyvidas.com)


Tobias Peucer e as origens do jornalismo


Orlando Tambosi*


Resumo – O artigo procura relacionar o estudo pioneiro de Tobias Peucer sobre jornalismo (publicado em 1690) com o “espírito da época”, mostrando que a atividade jornalística se desenvolve no contexto da revolução científica e que, já no século XVII, não por acaso também chamado o “século dos periódicos”, ocorre uma verdadeira “explosão do jornalismo”, que fixaria alguns conceitos fundamentais da profissão ainda hoje vigentes.

Palavras-chave: jornalismo – história – revolução científica – filosofia.

1. Tobias Peucer, considerado o autor da primeira tese doutoral sobre jornalismo[1], publicada no final do século XVII, teve o mérito de sistematizar os principais conceitos da recém-nascida imprensa periódica, mas não deve ser visto como precursor ou fundador de uma “teoria do jornalismo”. Na verdade, os pressupostos teóricos e regras técnicas que ele enuncia correspondem à “cultura da notícia”[2] que começava a se consolidar nos principais centros da Europa (principalmente na Holanda) em função da expansão do comércio e da proliferação de periódicos. Peucer remete, portanto, às origens do jornalismo (o próprio termo “jornalista” passou a ser utilizado em francês, inglês e italiano somente por volta de 1700[3]). Filho da modernidade tal como as ciências, o jornalismo seria decisivo, no século XVIII, à difusão das idéias do Iluminismo – só então assumindo características político-ideológicas mais nítidas -, que desembocariam na formação da chamada “opinião pública” e na Revolução Francesa de 1789.

Vale a pena reconstituir os traços histórico-filosóficos mais marcantes daquela época. O opúsculo de Peucer (constituído de 29 parágrafos) surge três anos depois da publicação de Princípios matemáticos de filosofia natural, de Isaac Newton (1642-1727), o pai da física moderna, e no mesmo ano em que vieram à luz o Ensaio sobre o intelecto humano e Dois tratados sobre o governo, do filósofo John Locke (1632-1704), fundador do empirismo e teórico do liberalismo. Na Alemanha de Peucer, o filósofo e lógico Wilhelm Leibniz (1646-1716) estabelecia as diferenças entre a investigação científica e a pesquisa filosófico-metafísica, criticava Descartes (1596-1650) e polemizava com Newton sobre a primazia na criação do cálculo diferencial. A revolução científica[4], que já varrera boa parte da Europa, lentamente começa a mudar a imagem do mundo, solapando a concepção aristotélico-cristã do universo.

É no século XVII que irrompe este grandioso movimento de idéias que transformará profundamente não só a ciência e a filosofia, mas a própria concepção do mundo e da vida: a obra de Galileu Galilei (1564-1642) lhe fornecerá as características determinantes; Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes, cada qual à sua maneira, serão seus arautos filosóficos. Desfecho: “a imagem newtoniana do universo concebido como uma máquina, ou seja, como um relógio”.[5] De agora em diante,

a ciência (...) não é mais a intuição privilegiada do mago ou astrólogo iluminado, individualmente, nem o comentário a um filósofo (Aristóteles) que disse “a” verdade, isto é, não mais um discurso sobre “o mundo de papel”, mas sim investigação e discurso sobre o mundo da natureza (...). Trata-se de um processo verdadeiramente complexo, que (...) encontra seu resultado na fundamentação galileana do método científico e, portanto, na autonomia da ciência em relação às proposições de fé e às concepções filosóficas. (...) A ciência é ciência experimental. É através do experimento que os cientistas tendem a obter proposições verdadeiras sobre o mundo.[6]

É também no século XVII que surgem as primeiras academias e sociedades científicas, expressamente destinadas a promover a colaboração sistemática entre cientistas, pesquisadores e eruditos (Accademia del Cimento [Academia do Experimento], em 1657, na Itália; Royal Society, em 1662, na Inglaterra; e Académie des Sciences, em 1666, na França; na Alemanha, a Academia de Ciências de Berlim não surgiria antes de 1700, fundada por Leibniz, seu primeiro presidente).

Independentes das universidades, em geral controladas pelo poder eclesiástico e mais voltadas a uma filosofia escolástica, essas associações – como observa P. Rossi - tinham justamente por objetivo “o avanço e o progresso das ciências e das artes através da colaboração”. Tal objetivo é destacado no prefácio da primeira edição (1666) das Philosophical Transactions, revista da Royal Society, assinado por Henry Oldenburg, um seguidor de Bacon e secretário da associação: “estas Transactions são publicadas para que se possa aumentar ainda mais a aspiração a um conhecimento sólido e útil (...) e para que os pesquisadores sejam convidados e encorajados a procurar, experimentar, encontrar coisas novas, transmitir mutuamente seus conhecimentos e contribuir no que possam para o grande fim de fazer progredir a ciência da natureza”.[7]

2. A pequena Holanda se tornará, no decorrer do século - graças à abertura aos estrangeiros e ao princípio de tolerância, funcional ao desenvolvimento econômico e científico -, o refúgio de comerciantes, cientistas, filósofos e técnicos perseguidos em seus países por motivos religiosos. A fuga de cérebros e capitais dos países da Contra-Reforma transforma Amsterdã no principal centro capitalista da Europa e, conseqüentemente, no principal mercado de informação.

Num estudo sobre a gênese do capitalismo, o sociólogo italiano Luciano Pellicani aponta a república holandesa como um “verdadeiro laboratório” em que se podia observar a sociedade capitalista-burguesa em estado bruto: “laica, industriosa, tolerante”, com a economia na linha de frente, “subordinando às suas específicas exigências a política e neutralizando a religião”.[8] Tolerância religiosa e florescimento intelectual, de fato, caminhariam juntos na ascensão da burguesia mercantil holandesa, retratada nas pinturas de Vermeer e Rembrandt. Impulsionado pela diáspora de protestantes e calvinistas, tal processo desencadeará a “explosão do jornalismo”.[9]

Os “relatos jornalísticos”, porém, não nascem na Holanda. A progressiva expansão dos mercados exigiu, já a partir do século XV, uma rede de informações cada vez mais articulada. Notícias manuscritas relatando a situação político-econômica e as transações comerciais e financeiras, celeremente reproduzidas por copistas em poucas centenas de exemplares, abasteciam as elites das principais cidades. Veneza era então o centro editorial da Europa (a imprensa, recorde-se, fora inventada por Guttenberg em 1438), posição que preservaria durante todo o século XVI: funcionavam ali aproximadamente 500 casas impressoras, que publicaram milhares de livros (um só editor, Gabriel Giolito, chegou a imprimir em torno de 850 títulos)[10]. Mas as primeiras notícias impressas só surgem entre o final do século XV e o início do século XVI, a princípio com periodicidade bastante irregular, característica que se prolongará até o início do século seguinte. Tratam-se das gazetas, assim chamadas por tomarem de empréstimo o nome da moeda veneziana gazzetta, utilizada para comprá-las.
Burke observa que panfletos sobre eventos da atualidade já eram vendidos no século XVI, mas são os jornais e revistas publicados depois de 1600 que melhor ilustram o comércio da informação: “as notícias já eram vistas como mercadorias no século XVII[11].” O fato é reconhecido também por Peucer, no parágrafo VIII de seu escrito. “As causas da aparição dos periódicos impressos com tempestiva freqüência hoje em dia”, diz ele, “são em parte a curiosidade humana e em parte a busca de lucro, tanto da parte dos que confeccionam os periódicos, como da parte daqueles que os comerciam, vendem.”

3. A verdadeira imprensa periódica aparece no início do século XVII, em Antuérpia, nos Países Baixos, com a publicação semanal da folha As últimas notícias (Nieuwe Tydinghen), a partir de maio de 1605. Nos anos seguintes, novas publicações semanais surgem quase ao mesmo tempo na Basiléia, em Estrasburgo, Frankfurt, Berlim, Hamburgo, Praga, Colônia e Amsterdã. Londres terá seu primeiro jornal em 1622; Paris, em 1631; Florença, em 1636; Roma, em 1640; e Madri, em 1661.

Vale mencionar que, na França, Theophraste Renaudot, editor da Gazette e médico do rei Luiz XIII, já antecipava na década de 1630 alguns pontos importantes em relação aos jornais, tratando das fontes e estabelecendo a diferença entre história e relato jornalístico. “A história”, dizia ele, “é o relato das coisas acontecidas, a gazeta é somente a voz corrente. A primeira é tida por dizer sempre a verdade, a segunda já faz muito se impede a mentira. E não mente nem mesmo quando refere notícias falsas que lhe foram comunicadas como verdadeiras. Só a mentira difundida conscientemente como tal pode torná-la digna de reprovação.”[12] Ainda que a solução proposta por Renaudot fosse desculpar de antemão o gazetier de boa fé, eximindo-o de qualquer responsabilidade, não resta dúvida de que ele foi o primeiro a suscitar o problema das fontes, essenciais ao trabalho jornalístico.

Peucer também comentará a diferença entre relato histórico e relato jornalístico em seu estudo de 1690. Enquanto o primeiro pode ser ordenado “como um fio contínuo, conservando a sucessão precisa dos fatos históricos”, o segundo “contém a notificação de coisas diversas acontecidas recentemente em qualquer lugar”, limitando-se a uma “simples exposição”, para reconhecimento dos fatos mais importantes, ou mesmo misturando "coisas de temas diferentes, como acontece na vida diária ou como são propagadas pela voz pública, para que o leitor curioso se sinta atraído pela variedade de caráter ameno e preste atenção” (parágrafos III e IV). O relato periodístico, em suma, trata de “coisas singulares”, tais como inundações, tempestades, terremotos, “as obras ou os feitos maravilhosos e insólitos da natureza ou da arte” etc. (parágrafo XV).

Quanto às fontes, Peucer parece sugerir a pluralidade. Diz ele no parágrafo XIV que “é preciso averiguar se quando um fato acontecido recentemente é anunciado imediatamente em locais diversos, é confirmado pelo testemunho de muitos”. Se houver discordância, confere-se “uma credibilidade provável às coisas narradas, de sorte que afinal ao mais sério, pode suceder-lhe que algumas vezes se lhe misture coisas falsas com coisas verdadeiras sem culpa sua.” Sobretudo, “não se pode mentir nem dizer coisas falsas de sorte que o outro forme uma opinião falsa ou seja enganado”.

Segundo o historiador dos media Jeanneney, é exatamente no século XVII que se desenham alguns traços da imprensa moderna: já é amplo o leque de gêneros, e a nova profissão começa a ampliar sua própria liberdade, apesar das interferências dos governos e da corrupção[13]. Excetuando-se a liberal Holanda, no entanto, haveria censura prévia e férreo controle da imprensa por parte das monarquias européias até o século seguinte. O rei Frederico Guilherme I da Prússia, por exemplo, permitiria a existência, durante seu reinado (1713-1740), de apenas dois jornais, a cargo de funcionários por ele próprio designados: um, oficial, dedicado a assuntos da realeza; outro, literário, dedicado exclusivamente aos livros escolhidos pelo rei (a situação na Alemanha e Áustria só mudaria com a ascensão de Frederico II, iluminista, amigo dos filósofos, que desenvolve uma concepção menos grosseira do mundo cívico[14]). Basta lembrar, por fim, que livros ainda eram queimados em praça pública em pleno século XVIII, entre eles as Cartas filosóficas, de Voltaire (obra publicada em 1733), e o Emílio, de Rousseau (1762).

O sistema de censura mais abrangente, contudo, foi o instituído pela Igreja católica no século XVI: o Index Librorum Prohibituorum (Index dos Livros Proibidos). Concebido para se contrapor à Reforma (e à imprensa), incluía não só obras de teologia protestante, mas livros sobre outros assuntos escritos por “hereges”. Na lista figuravam nomes famosos como Copérnico, Galilei, Bacon, Descartes, Locke, Espinosa, Voltaire, Rousseau – para ficar apenas nos mencionados neste artigo. Atualizado regularmente até a 32a. edição, de 1948 (com uma relação de 4 mil livros), o Index foi um obstáculo à circulação do conhecimento no mundo católico: fora das bibliotecas dos grandes centros, era difícil encontrar exemplares de livros proibidos.[15]
Sobre a censura, o que tem a dizer Peucer? O parágrafo XVIII, a propósito das “precauções” para a seleção da matéria dos relatos jornalísticos, certamente não expressa a visão de um iluminista:

Eis a terceira precaução: que não se insira nos periódicos nada que prejudique os bons costumes ou a verdadeira religião (...). É por isso que em algumas cidades se estabeleceu com uma prudente decisão que não seja permitido imprimir periódicos sem que estes tenham sido aprovados pela censura. Dá-se, com efeito, a honesta disciplina, para que os espíritos inocentes não sejam ofendidos com esta espécie de páginas impuras espalhadas aqui e ali, ou que, por outro lado, os que são propensos ao mal, não venham a ser incitados por esse tipo de escritos.

4. Amsterdã passa a ocupar no século XVII o lugar que Veneza ocupara no século anterior como centro de informação e de produção e comercialização de livros. Gazetas de notícias eram ali impressas regularmente em diversas línguas, como é o caso dos primeiros jornais publicados em inglês e francês, em 1620: The Corrant out of Italy, Germany etc. e Courant d’Italie, Alemaigne etc. [Atualidades da Itália, Alemanha etc.]. Mais de 270 livreiros e impressores atuavam na cidade, imprimindo também bíblias, mapas, Atlas, dicionários, enciclopédias e relatos de viagens em vários idiomas, do latim ao francês, do inglês ao alemão, além de russo, iídiche, armênio e georgiano. Contam os historiadores que os marinheiros ingleses dependiam dos editores holandeses para informações e orientações “até mesmo sobre as costas da Inglaterra”.[16] Tanto se publicava (e não só na Holanda) que, ao final do século, surge também a resenha de livros.

É ainda em Amsterdã que o filósofo calvinista Pierre Bayle (1647-1706), exilado da França, começa a publicar em 1684 as Nouvelles de la République des Lettres [Notícias da República das Letras], cujo sucesso foi imediato[17]. Cresciam agora as publicações eruditas e culturais, a exemplo das revistas das academias científicas (como a citada Philosophycal transactions, da Royal Society inglesa). Em Paris, o Journal des Savants (1665), mantido pela Academia de Ciências, cultiva em suas 12 páginas semanais um modelo mais cultural e literário que seu congênere inglês, logo seguido pelo romano Giornale de’ Letterati (1668), de circulação mensal. Em Leipzig, as Acta Eruditorum (1684), editadas em latim, se transformariam numa das revistas mais famosas do século (foi em suas páginas, por exemplo, que Leibniz expôs o cálculo diferencial).

Nesse meio-tempo, a Leipzig de Peucer se afirma como um dos centros do jornalismo europeu. E é precisamente em Leipzig que se edita o primeiro jornal diário, experiência que só foi possível devido ao sistema conjunto de serviços postais e tipográficos. O Neueinlauffende Nachricht von Kriegs-und Welthandeln [Notícia corrente dos fatos da Guerra e do mundo] foi publicado quotidianamente durante mais de uma década pelo tipógrafo e livreiro Timotheus Ritsch. Ainda que essa experiência permanecesse como um fato isolado por algum tempo, estava aberto o caminho para uma presença cada vez mais forte do jornalismo.

A profissão de jornalista, de fato, amplia sua autonomia em relação aos ofícios de impressor e editor, disseminando algumas regras técnicas que constituirão a “cultura da notícia” do jornal moderno.[18] A imprensa começaria a tomar o lugar do púlpito, como lembra Eisenstein em seu belo estudo sobre “as revoluções do livro”. De agora em diante, a seleção e circulação de notícias seriam geridas por laicos, o que contribuiria para o processo de secularização (ou dessacralização) da cultura, essencial ao avanço do espírito científico. A partir do século XVIII, de fato,

o púlpito foi definitivamente suplantado pela imprensa periódica, e o dito “nada é sagrado” acabou por caracterizar a carreira do jornalista. Frente à “furiosa cobiça de novidade” e “sede generalizada de notícias”, os esforços dos moralistas católicos e dos evangélicos protestantes (...) se revelaram pouco úteis. O jornal mensal foi substituído pelo semanal e este, enfim, pelo quotidiano. Surgiam cada vez mais jornais de província (...). Os bisbilhoteiros freqüentadores de igreja já podiam saber dos assuntos locais percorrendo as colunas dos jornais, silenciosamente, na própria casa.[19]

5. Abolida a censura prévia, em 1695, também a Inglaterra passa a se distinguir no campo do jornalismo diário. Em Londres floresceriam as iniciativas mais duradouras, como a do Daily Courant, editado a partir de 1702, e a do The Evening Post, o primeiro vespertino inglês, lançado quatro anos depois. É então que a “cultura da notícia” dá o salto que, mudanças tecnológicas à parte, caracteriza o jornalismo ainda hoje. Já em seu primeiro número o Daily Courant anuncia as regras técnicas e as normas éticas que pautariam sua conduta. A cobertura do noticiário estrangeiro deveria citar as fontes, evitar “qualquer acréscimo de circunstâncias falsas a um evento”, relatando tudo “correta e imparcialmente”. “No início de cada artigo”, prossegue a apresentação, “o Autor citará o jornal estrangeiro em que se baseou, de modo que o Público (...) possa julgar com maior conhecimento a credibilidade e imparcialidade do relato.” Dispensando “comentários ou suposições subjetivos”, serão noticiados apenas “dados de fato.” E o jornal conclui: “este Courant (como mostra o título) será publicado diariamente: sendo pensado para dar todas as notícias tão logo cheguem com o correio: e se limita à metade do espaço, para poupar o público pelo menos metade das impertinências dos jornais comuns”.[20]

Credibility and fairness (credibilidade e imparcialidade) – eis, segundo Gozzini, “a primeira formulação de uma deontologia profissional do jornalista”[21], que depois se traduziria na clássica distinção entre fatos e opiniões. A carta de apresentação do Daily salienta a exigência de atualidade e enuncia sinteticamente algumas diretrizes que se tornariam fundamentais na profissão e hoje figuram em qualquer manual de redação: fidelidade aos fatos, preocupação com a verdade, rigor na apuração e seleção, além de exatidão e concisão. Delineia-se aqui a fórmula dos “cinco W”, isto é, o lead da notícia, que o jornalismo inglês consagraria: who (quem), what (o que), where (onde), when (quando), why (porquê). Não satisfeitas as condições do lead, ou o texto está mal elaborado ou não se trata de notícia.

Essas questões não escaparam a Peucer, que, no parágrafo XIII de sua tese, relaciona com “a vontade do escritor de periódicos” tanto “a credibilidade” quanto “o amor à verdade”. “Não seja o caso que”, afirma ele, “preso por um afã partidário, misture ali temerariamente alguma coisa de falso ou escreva coisas insuficientemente exploradas sobre temas de grande importância”. E, no parágrafo XXI, acrescenta que [no relato] “caberá ater-se àquelas circunstâncias já conhecidas que se costuma ter sempre em conta em uma ação, tais como a pessoa, o objeto, a causa, o modo, o local, e o tempo.”

Peucer está atento também à necessidade de concisão, clareza e atenção aos fatos. O estilo dos periódicos, sublinha o parágrafo XXII, não haverá de ser “nem oratório nem poético”, pois “aquele distancia o leitor desejoso de novidade”, e “este lhe causa confusão, além de não expor as coisas com clareza suficiente.” Os relatos jornalísticos devem seguir o fato tal “como sucedeu”, e para isso “o narrador se faz servir uma linguagem por um lado pura, mas por outro, clara a concisa”, evitando “as palavras obscuras e a confusão na ordem sintática.” No parágrafo XXIV, finalmente, Peucer conclui que “a finalidade dos novos periódicos é mais própria para o conhecimento de coisas novas acompanhadas de uma certa utilidade e atualidade”:

Com efeito, o afã de saber coisas novas é tão grande que cada vez que os cidadãos se encontram em encruzilhadas e nas vias públicas perguntam: “o que há de novo?” A fim de satisfazer esta curiosidade humana tem se imprimido de todo modo novos relatos jornalísticos em diversos idiomas. E os que os lêem podem satisfazer assim a sede de novidades dos companheiros e dos grupos de amigos.

6. Diante das exigências da cultura da notícia, então cada vez mais difusa, não surpreende que o primeiro quotidiano inglês tenha manifestado, já em seu número de extréia, a intenção de se destacar das publicações concorrentes, em geral menos criteriosas. Afinal, não eram incomuns, à época do Daily Courant e de Peucer, registros sensacionalistas de monstros e maravilhas, publicados lado a lado com relatos de cunho mais factual. Jeanneney cita como exemplo o jornal francês Mercure galant, que em 1680 manteve seus leitores em suspenso com a fantástica estória da “serpente de La Tour du Pin”, animal com “um maravilhoso rubi entre os dentes” (sic), que aparecera várias vezes entre os camponeses.[22]

Note-se que esse tipo de relato fantasioso pouco preocupava as elites, os religiosos e governantes. Curiosamente, o jornalista passou a ser mais criticado e malvisto quando, já consolidada a cultura da notícia, se torna mais objetivo, isto é, quando segue mais de perto os fatos, desprezando os “comentários ou suposições subjetivos”. Mas foi desse modo que a imprensa, particularmente a periódica, ajudou a expandir o conhecimento. Ela não só facilitou a interação entre diferentes tipos de conhecimento, mas estimulou o ceticismo, permitindo que “a mesma pessoa comparasse e contrastasse explicações alternativas e incompatíveis do mesmo fenômeno ou evento”.[23]

Embora mais conservador, em certos aspectos, que seus contemporâneos iluministas, Tobias Peucer soube captar as transformações vividas pela imprensa no século da revolução científica e dos periódicos. Como foi dito, De relationibus novellis teve o mérito de sistematizar conceitos e regras que, esparsos nas páginas de jornais e revistas, compunham o perfil de uma nova profissão - a de jornalista.

* Professor de Filosofia, Ética e Epistemologia do Departamento de Jornalismo da UFSC, Doutor em Filosofia pela Unicamp, é autor de O declínio do marxismo e a herança hegeliana, Florianópolis, Editora da UFSC, 1999, e A cruzada contra as ciências (no prelo). Nota: este artigo foi publicado originalmente na revista Estudos em jornalismo e mídia, de Florianópolis, vol. 1, n.2, 2004. Uma versão resumida saiu no Diário Catarinense, edição de 22/10/2005.

Notas

[1] Peucer, Tobias, De relationibus novellis, Leipzig, 1690 (Os relatos jornalísticos, tradução de Paulo da Rocha Dias, São Bernardo do Campo, Pós-Com-Umesp, 1999, publicada na Revista Comunicação e Sociedade, 33, pp. 199-214).
[2] A expressão é de Giovanni Gozzini em Storia del giornalismo, Milão, Bruno Mondadori, 2000.
[3] Cfr. Peter Burke, Uma história social do conhecimento (de Gutenberg a Diderot), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p. 34.
[4] Em geral, considera-se como período da revolução científica o tempo transcorrido entre a publicação de Sobre as revoluções das órbitas celestes, de Nicolau Copérnico (1543), e dos Principia mathematica, de Newton (1687); a referência básica, no entanto, permanece sendo o século XVII.
[5] Giovanni Reale e Dario Antiseri, História da filosofia, São Paulo, Edições Paulinas, 1990, vol. II, p. 185.
[6] Ibidem, p. 187.
[7] Citado por Paolo Rossi, Os filósofos e as máquinas, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 86.
[8] Luciano Pellicani, Saggio sulla genesi del capitalismo, Milão, SugarCo, 1992, p. 276. Observe-se, entretanto, que a tolerância holandesa não impediu que também lá houvesse limites à liberdade de expressão. O Tratado teológico-político, do filósofo Baruch Espinosa (1632-1677), ele próprio um holandês (segregado pela comunidade judaica de Amsterdã aos 24 anos de idade), foi banido em 1674. Os teólogos consideravam o grande filósofo um ateu e blasfemo, nocivo aos valores da república.
[9] P. Burke, obra citada, p. 149.
[10] Ibidem, p. 147. Só no século XV, diz Burke, “mais livros foram impressos em Veneza do que em qualquer outra cidade da Europa (aproximadamente 4.500 títulos, o que chega a algo como 2 milhões de cópias)”.
[11] P. Burke, idem, p. 152.
[12] G. Gozzini, obra citada, p. 25; ver também Jean-Noël Jeanneney, Storia dei media, Roma, Riuniti, 1996, p. 31 (original francês: Une histoire des médias, Paris, Seuil, 1996).
[13] Cfr. J. N Jeanneney, obra citada, pp. 20-22.
[14] Ibidem, pp.40-1.
[15] Por outro lado, o Index foi um chamariz para os editores e livreiros laicos, gerando uma espécie de mercado negro para os livros proibidos que mais atraíam a curiosidade (ver P. Burke, obra citada, p. 130. O autor chama atenção também para a censura protestante, menos centralizada que a católica, mas não menos perniciosa).
[16] Ver P. Burke, obra citada, p. 148.
[17] Impressionado com a proliferação de gazetas e outros tipos de periódicos, Bayle, autor de um importante Dicionário histórico-crítico, já na época reivindicava uma história da imprensa (Cfr. J.M. Jeanneney, obra citada, p. 33.
[18] Cfr. G. Gozzini, obra citada, p.36-37.
[19] Elizabeth L. Eisenstein, Le rivoluzioni del libro. L’invenzione della stampa e la nascita dell’età moderna, Bolonha, Il Mulino, 1995, p. 106. A autora faz uma interessante análise das imbricações entre o Renascimento, a Reforma protestante e a revolução científica, profundamente influenciados pela invenção da imprensa (há tradução brasileira: A revolução da cultura impressa, São Paulo, Ática, 1998).
[20] G. Gozzini, obra citada, pp.42-43.
[21] Ibidem, p. 43.
[22] J. N. Jeanneney, Storia dei media, cit., p. 24.
[23] P. Burke, obra citada, p. 19.

Referências bibliográficas

BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento (de Gutenberg a Diderot). Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

EISENSTEIN, Elizabeth L. Le rivoluzione del libro. L’invenzione della stampa e la nascita dell’età moderna. Bolonia: Il Mulino, 1995.

GOZZINI, Giovanni. Storia del giornalismo. Milão: Bruno Mondadori, 200.

JEANNENEY, Jean-Noël. Storia dei media. Roma: Riuniti, 1996.

PELLICANI, Luciano. Saggio sulla genesi del capitalismo. Milão: SugarCo, 1992.

PEUCER, Tobias. Os relatos jornalísticos. Tradução de Paulo da Rocha Dias. Revista Comunicação & sociedade, n. 33.

REALE, Giovanni, e ANTISERI, Dario. História da filosofia (vol. II). São Paulo: Edições Paulinas, 1990.

ROSSI, Paolo. Os filósofos e as máquinas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989

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