23.8.07

Jornalismo e objetividade

Por Ali Kamel, em 7/2/2007.

(Reproduzido de O Globo, 6/2/2007).

No meu artigo anterior, defendi a idéia de que o jornalismo é uma forma de conhecimento, uma maneira de apreender a realidade. Afirmei que, diante de uma miríade de fatos, os jornais, seguindo um determinado método, são capazes de escolher o que é relevante.

E que é possível fazer isso com um grau aceitável de objetividade e isenção (embora não sejam todos os veículos que se esforçam para tal). O artigo era uma resposta àqueles que acham que existe apenas um jornalismo de tendências, e que tudo, editorial, páginas de artigos e noticiário em geral, é produzido segundo os valores e as crenças dos donos dos jornais e dos jornalistas que para eles trabalham.

Afirmei que quem pensa assim se justifica sempre se escorando em platitudes filosóficas: a objetividade é um mito, a verdade é inalcançável etc.

Se fosse assim, o jornalismo não retrataria nem analisaria fatos, mas apenas a visão que grupos têm deles. Eu disse que um jornalismo produzido assim não seria jornalismo, mas publicidade, propaganda, porque teria como objetivo não informar, mas conquistar almas, adeptos, seguidores. O jornalismo seria apenas um campo de batalhas de ideologia.
Embora reconhecesse que o jornalismo não consegue ser 100% objetivo, eu disse que, se bem-feito, consegue uma aproximação da realidade, a melhor para aquele período histórico e a partir do instrumental e dos recursos disponíveis. Prometi tratar hoje de como isso é possível. Vamos lá.

O compromisso com a isenção é formal e deve ser uma busca consciente de todos os jornalistas: deve-se sempre, conscientemente, tentar despir-se de seus preconceitos, de suas certezas, de suas paixões, mesmo sabendo que isso não é realizável totalmente. Se em jornalismo não se tem o tempo necessário para se fazer a crítica aos próprios valores, que um antropólogo ou um sociólogo fará antes, durante e depois de qualquer pesquisa, isso não quer dizer que o jornalista deve relaxar seu autocontrole e deixar que suas crenças e seus preconceitos contaminem o seu trabalho cotidianamente. Deve-se sempre evitar idiossincrasias ("esse tipo de assunto eu não noticio", "fulano não merece uma linha de jornal", "esse cara é um escroque, merece mesmo apanhar").

Um bom exercício é tentar abrir sempre espaço a quem pensa diferente, a quem aparentemente está errado, a assuntos de que o jornalista não gosta. Esse é o ponto de partida, o básico, aquilo que está em todo manual. Mas se sabemos que isso na prática não é realizável em 100% do tempo, se somente uma máquina ou um santo conseguiria o autocontrole desejável, isso quer dizer que o jornalismo estará sempre longe da isenção e da objetividade?

Não, porque o processo mesmo de produção de notícias tem mecanismos que ajudam a evitar desvios inconscientes ou propositais. Como o jornalismo é por definição uma obra coletiva, toma parte de todos os processos e de todas as decisões uma multiplicidade de cabeças, cada uma com seus valores individuais, seus preconceitos, suas tendências. Um preconceito tende a anular o outro, uma decisão enviesada tende a ser revista ao longo do dia pela reação de colegas que pensam diferente.
Não se trata de uma discussão eterna ou de uma guerra sem fim, mas de um processo natural, de que poucos se dão conta conscientemente. Mas que existe. Quando um fato chega à redação, é muito comum que se ouça de primeira um "isso não vale" para, logo a seguir, ver-se instalar uma discussão rápida, mas intensa, sobre se "isso vale ou não vale mesmo", num debate extremamente produtivo. Em redações saudáveis, sem a presença de editores idiossincráticos, o resultado acaba sendo um noticiário mais perto da objetividade possível (e editores idiossincráticos, mostra a experiência, acabam expulsos do mercado, porque a arte de editar é a arte de saber ouvir).

Mesmo que essa vacina natural falhe, porém, outra entra em ação para corrigir eventuais desvios: a concorrência entre empresas jornalísticas que disputam o mesmo público. O que um jornal não dá, por omissão deliberada ou por incompetência, o outro dará (e este outro é o concorrente direto, mas também a internet, o rádio, a televisão). Não existe conluio possível entre empresas jornalísticas que competem entre si. Não existe silêncio coletivo auto-imposto. Se o jornal que pecou ou errou não se corrigir, acaba manchado, fora do mercado.

Quem melhor entendeu que o jornalismo é uma forma de conhecer a realidade, com as características que procurei detalhar até aqui, foi a grande imprensa e o seu público. Este exige dela informações que supõe serem as que mais se aproximam da realidade. Querem conhecer para depois formar opinião. Quando percebe que um jornal lhe solapa isso, deixa de comprá-lo.

A grande imprensa há muito entendeu isso. É a única que, de maneira organizada, consegue reunir os recursos tecnológicos e humanos capazes de decodificar a realidade imediata e recodificá-la de modo a ser entendida pelo público. Ela é a única que investe grandes somas de dinheiro em tecnologia de ponta, cada vez mais sofisticada, para que o jornalismo possa cumprir uma de suas obrigações básicas: informar com rapidez. É também a única capaz de atrair pessoal qualificado e, na ausência dele, de qualificar pessoal de modo a torná-lo apto a desempenhar a sua tarefa.

Se mais não for, trata-se de uma questão de sobrevivência. Grupo de mídia algum trocará a sua reputação de longo prazo, garantidora de sua audiência e de sua credibilidade, e, portanto, de seus lucros, para se imiscuir na vida política da sociedade visando a obter benefícios de curtíssimo prazo. Quem pode fazer isso são experiências "jornalísticas" efêmeras, de oportunidade; mas estas, ao enveredarem por esse caminho, abandonam o jornalismo para praticar algo que, como disse antes, na verdade é apenas publicidade.

Um desses que fizeram essa opção escreveu outro dia: "Ninguém é santo". Talvez este seja o único ponto em que concordamos. Mas o fato de que somos todos humanos não significa dizer que todos erremos de propósito.


(Ilustração: Fractal 32, de MaGenco).

22.8.07

O jornalismo

Por Ali Kamel, O Globo, 23/1/2007.

O ano que passou foi especialmente indutor de uma discussão que precisa ser enfrentada: o jornalismo é um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade? Já com alguma distância das eleições, que acirraram esse debate, a discussão pode ser travada com menos paixão.

No calor daqueles dias, pairou a idéia de que só existe jornalismo de tendências, uma imprensa de direita e uma imprensa de esquerda, uma tentando mais do que a outra impor as suas idéias. Não estavam em questão apenas os editoriais, mas o fazer jornalístico propriamente dito: a produção de notícias. O jornalismo estaria condenado a ser um campo de batalha de ideologias, estaria a reboque delas ou, pior, a serviço delas. Os jornais (impressos, digitais, radiofônicos ou televisivos) seriam feitos de acordo com os valores de seus donos e dos jornalistas que para eles trabalham. Para provar o que seria o óbvio, os partidários dessa tese lançavam mão de postulados filosóficos como se fossem platitudes: a verdade é inalcançável, isenção é uma utopia, não existe objetividade total. Assim, os jornais seriam feitos segundo as suas verdades e de acordo com os interesses de seu grupo. Os fatos seriam escolhidos, não por critérios de relevância mais ou menos reconhecidos por qualquer bom profissional, mas conforme os valores de quem escolhe. E ganhariam pouco ou grande destaque, seriam narrados e analisados dessa ou daquela maneira, segundo aqueles mesmos valores. Como quem pensa assim não se permite dizer "e o público que se dane", o remédio sugerido por eles seria de uma simplicidade atroz: basta que o público conheça claramente a posição de cada jornal para que escolha aquele que melhor representa sua verdade.

Ocorre que, se fosse assim, não existiria jornalismo, mas apenas publicidade. O objetivo dos jornais seria a cotidiana busca de adeptos de uma determinada visão do mundo. Fariam, então, propaganda; propaganda política, mas propaganda.

E os jornais estariam mortos ou definhando. A sociedade não teria como se mexer, como andar: se não há verdade, se só há um relato de esquerda e outro de direita, como falar em fatos? Viveríamos numa sociedade sem referencial, num mundo de versões.

Nada disso. O jornalismo é uma forma de conhecimento, de apreensão da realidade, segundo um método próprio que, se seguido corretamente (e não são muitos os veículos que se esforçam por segui-lo), leva ao relato e à análise dos fatos com fidelidade. Muitos pensadores brasileiros pensam assim, mas, aqui, não quero citá-los, porque, embora concordemos com esse postulado geral, a partir dele os caminhos são bem diversos (e, assim, não quero correr o risco de que o leitor pense que me apóio na autoridade deles para corroborar o que aqui escrevo).

Diante de uma miríade de acontecimentos, os jornalistas são treinados para discernir que fatos têm relevância e narrá-los e analisá-los de maneira lógica e isenta. Isso implica acolher na análise os diversos pontos de vista, pois a pluralidade é regra geral em tudo o que se faz em jornalismo, inclusive nas páginas de artigos, que devem espelhar as tendências da sociedade. Opinião própria, apenas nos editoriais e sem repercussão no noticiário. Pode haver, portanto, jornais de esquerda e de direita, mas no que se refere a suas opiniões expressas em editoriais, jamais contaminando o noticiário, em nenhuma hipótese influenciando o que deve ou não ser noticiado. Como toda obra humana, o jornalismo está também sujeito ao erro, e erra em quantidade. A regra é a transparência: reconhecer o erro e corrigi-lo.

A prova dos nove de que isso é possível é a comparação entre jornais diferentes. Se compararmos o "Los Angeles Times", o "Washington Post" e o "New York Times", que têm linhas editoriais muito distintas, notaremos com facilidade que é muito parecida a cesta de assuntos oferecida aos leitores. Se excluirmos os assuntos locais, a mesma comparação pode ser feita entre os três americanos e o "El País", da Espanha, o "La Repubblica", da Itália, e o "Daily Telegraph", do Reino Unido: a coincidência também será grande. No Brasil, o leitor pode verificar que "Folha de S.Paulo", "Estado de S. Paulo" e O GLOBO, jornais com poucas afinidades e concorrentes ferozes, destacam sempre mais ou menos os mesmos assuntos. Não é falta de criatividade: é que os jornalistas que neles trabalham, profissionais treinados, sabem reconhecer num enxame de fatos o que é relevante e o que não é.

Mesmo o chamado jornalismo de opinião, em que o jornal ou a revista noticia os fatos, opinando todo o tempo sobre eles, se bem-feito, não se confunde com o que chamei de publicidade. Porque, neste caso, os veículos devem procurar ser isentos e plurais no relato e análise dos acontecimentos, mesmo que ofereçam ao leitor, ao lado da informação, o seu próprio ponto de vista.

Sim, se nem a ciência consegue alcançar a verdade e a objetividade total, como o jornalismo faria essa mágica? Não faz. Como a ciência, o jornalismo é uma aproximação da realidade, mas a melhor que se pode obter naquele instante com o instrumental disponível. É certo que um episódio - o apagão aéreo, por exemplo - daqui a 50 anos vai ser contado e analisado por historiadores com acesso a um material que os jornalistas não conhecem hoje: documentos secretos, atas de reuniões, depoimento dos envolvidos dado muito tempo depois. Daí emergirá um relato mais acurado do que o que os jornais conseguem fazer hoje. Mas os próprios jornais serão usados como fonte da História porque eles conseguem o que historiador algum será capaz de fazer sem eles: capturar o sentimento de uma época. A manchete "gritada" sobre o apagão é ela própria, em sua forma, uma informação: dá conta da perplexidade que a sociedade vive naquele instante. A diagramação do jornal, a hierarquização das notícias, as fotos, são todos eles recursos que informam. Que ajudam a conhecer a realidade. E são próprios apenas ao jornalismo.

Como obter o máximo de objetividade e isenção em jornalismo é o que pretendo discutir no meu próximo artigo.