Por Ali Kamel, O Globo, 23/1/2007.
O ano que passou foi especialmente indutor de uma discussão que precisa ser enfrentada: o jornalismo é um campo de batalha de ideologias ou é uma forma de conhecimento da realidade? Já com alguma distância das eleições, que acirraram esse debate, a discussão pode ser travada com menos paixão.
No calor daqueles dias, pairou a idéia de que só existe jornalismo de tendências, uma imprensa de direita e uma imprensa de esquerda, uma tentando mais do que a outra impor as suas idéias. Não estavam em questão apenas os editoriais, mas o fazer jornalístico propriamente dito: a produção de notícias. O jornalismo estaria condenado a ser um campo de batalha de ideologias, estaria a reboque delas ou, pior, a serviço delas. Os jornais (impressos, digitais, radiofônicos ou televisivos) seriam feitos de acordo com os valores de seus donos e dos jornalistas que para eles trabalham. Para provar o que seria o óbvio, os partidários dessa tese lançavam mão de postulados filosóficos como se fossem platitudes: a verdade é inalcançável, isenção é uma utopia, não existe objetividade total. Assim, os jornais seriam feitos segundo as suas verdades e de acordo com os interesses de seu grupo. Os fatos seriam escolhidos, não por critérios de relevância mais ou menos reconhecidos por qualquer bom profissional, mas conforme os valores de quem escolhe. E ganhariam pouco ou grande destaque, seriam narrados e analisados dessa ou daquela maneira, segundo aqueles mesmos valores. Como quem pensa assim não se permite dizer "e o público que se dane", o remédio sugerido por eles seria de uma simplicidade atroz: basta que o público conheça claramente a posição de cada jornal para que escolha aquele que melhor representa sua verdade.
Ocorre que, se fosse assim, não existiria jornalismo, mas apenas publicidade. O objetivo dos jornais seria a cotidiana busca de adeptos de uma determinada visão do mundo. Fariam, então, propaganda; propaganda política, mas propaganda.
E os jornais estariam mortos ou definhando. A sociedade não teria como se mexer, como andar: se não há verdade, se só há um relato de esquerda e outro de direita, como falar em fatos? Viveríamos numa sociedade sem referencial, num mundo de versões.
Nada disso. O jornalismo é uma forma de conhecimento, de apreensão da realidade, segundo um método próprio que, se seguido corretamente (e não são muitos os veículos que se esforçam por segui-lo), leva ao relato e à análise dos fatos com fidelidade. Muitos pensadores brasileiros pensam assim, mas, aqui, não quero citá-los, porque, embora concordemos com esse postulado geral, a partir dele os caminhos são bem diversos (e, assim, não quero correr o risco de que o leitor pense que me apóio na autoridade deles para corroborar o que aqui escrevo).
Diante de uma miríade de acontecimentos, os jornalistas são treinados para discernir que fatos têm relevância e narrá-los e analisá-los de maneira lógica e isenta. Isso implica acolher na análise os diversos pontos de vista, pois a pluralidade é regra geral em tudo o que se faz em jornalismo, inclusive nas páginas de artigos, que devem espelhar as tendências da sociedade. Opinião própria, apenas nos editoriais e sem repercussão no noticiário. Pode haver, portanto, jornais de esquerda e de direita, mas no que se refere a suas opiniões expressas em editoriais, jamais contaminando o noticiário, em nenhuma hipótese influenciando o que deve ou não ser noticiado. Como toda obra humana, o jornalismo está também sujeito ao erro, e erra em quantidade. A regra é a transparência: reconhecer o erro e corrigi-lo.
A prova dos nove de que isso é possível é a comparação entre jornais diferentes. Se compararmos o "Los Angeles Times", o "Washington Post" e o "New York Times", que têm linhas editoriais muito distintas, notaremos com facilidade que é muito parecida a cesta de assuntos oferecida aos leitores. Se excluirmos os assuntos locais, a mesma comparação pode ser feita entre os três americanos e o "El País", da Espanha, o "La Repubblica", da Itália, e o "Daily Telegraph", do Reino Unido: a coincidência também será grande. No Brasil, o leitor pode verificar que "Folha de S.Paulo", "Estado de S. Paulo" e O GLOBO, jornais com poucas afinidades e concorrentes ferozes, destacam sempre mais ou menos os mesmos assuntos. Não é falta de criatividade: é que os jornalistas que neles trabalham, profissionais treinados, sabem reconhecer num enxame de fatos o que é relevante e o que não é.
Mesmo o chamado jornalismo de opinião, em que o jornal ou a revista noticia os fatos, opinando todo o tempo sobre eles, se bem-feito, não se confunde com o que chamei de publicidade. Porque, neste caso, os veículos devem procurar ser isentos e plurais no relato e análise dos acontecimentos, mesmo que ofereçam ao leitor, ao lado da informação, o seu próprio ponto de vista.
Sim, se nem a ciência consegue alcançar a verdade e a objetividade total, como o jornalismo faria essa mágica? Não faz. Como a ciência, o jornalismo é uma aproximação da realidade, mas a melhor que se pode obter naquele instante com o instrumental disponível. É certo que um episódio - o apagão aéreo, por exemplo - daqui a 50 anos vai ser contado e analisado por historiadores com acesso a um material que os jornalistas não conhecem hoje: documentos secretos, atas de reuniões, depoimento dos envolvidos dado muito tempo depois. Daí emergirá um relato mais acurado do que o que os jornais conseguem fazer hoje. Mas os próprios jornais serão usados como fonte da História porque eles conseguem o que historiador algum será capaz de fazer sem eles: capturar o sentimento de uma época. A manchete "gritada" sobre o apagão é ela própria, em sua forma, uma informação: dá conta da perplexidade que a sociedade vive naquele instante. A diagramação do jornal, a hierarquização das notícias, as fotos, são todos eles recursos que informam. Que ajudam a conhecer a realidade. E são próprios apenas ao jornalismo.
Como obter o máximo de objetividade e isenção em jornalismo é o que pretendo discutir no meu próximo artigo.
22.8.07
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