20.4.08

Outra história

Uma mulher se levanta e diz: sou uma personagem e esta é uma história. E eu disse a ela: sim, você é uma personagem que assiste a tudo quieta e esta é uma história. Uma outra história.

O ar se adensa de sussurros das coisas acontecidas. Homens olham para o céu e mulheres zelam pelo fogo na lareira. No lar. Lá em cima estrelas, vapores, astros descomunais. Aqui em baixo explicações, encantamento, medo. Explicações, encantamento, medo: seres caóticos, no princípio, e no princípio era o adjetivo e não o verbo. O Pensamento Ordenador nasce do Espanto e o Espanto não tem origem: é a origem. E também não tem finalidade: é o fim. O Pensamento Ordenador pode ser bem direcionado e acabar retornando da sua longa viagem com uma imensa bagagem de presentes ao Espanto. Presentes reais, factuais, os quais o Espanto recebe com muito espanto. Mas pode acontecer também de o Pensamento Ordenador julgar-se o Fiat lux, a verdade e a vida. E o princípio, o fim e os meios. Aí não há caminho, só há sistema: fechado, perfeito e acabado.


O riso de uma mula poderia ser instrumento de um misterioso aviso? Havia quem relacionasse erradamente os dias e os fatos fazendo com que o raciocínio estacasse a altura dos ombros. Um homem é claro. Porque a mulher continua cuidando do fogo na lareira. No lar. Pressentimentos antecedem os grandes acontecimentos? Ou serão os fatos aparentemente inexplicáveis os geradores da crença atenuadora da angústia de que é possível guiar-se pelos pressentimentos?


Um homem, uma personagem que fala, a única que sempre fala, diz: Quando chegar os dias de chuva a terra poderá se alagar e o alagamento prejudicará as plantações. Antes falarmos disto. De certezas puras. Assim é que eu gosto. Só para dizer coisas acontecentes vale a pena abrir a boca. Sua mulher avivou o fogo na lareira. No lar. E sua boca disse uma quase palavra: ah...

A noite era um lastro de escuro, estrelas e sombras com vida própria. O homem diz: quero lhe contar uma história, mulher. A história do dia em que éramos um e tudo era perfeito. Não havia, então, nem falsas nem verdadeiras fantasias. Eu não havia, nem tu, nem nós, e as coisas também eram viúvas de seus nomes e se incendiavam eternamente sendo apenas o que eram sem os estremecimentos dos medos famintos de rótulos. Tudo era assim, até que você, maldita, você disse algo através desse seu nariz de vidro. E o mundo se estilhaçou em desunidades. E o dormir se tornou essa necessidade escura. E o acordar essa necessidade clara.

A mulher pensou em dizer amém, mas não disse nada. Ninguém deveria ter de engolir a própria vida, mas esse homem que conta histórias me leva a julgar que o silêncio, o meu silêncio, é a nossa salvação. E assim se aninhou nos braços dele, juntou os braços no regaço e sentiu que infinitas pedras iriam nascer no leito dos rios.

No dia seguinte a mulher voltou ao seu posto de silenciosa vigília ígnea e o homem a olhar o céu e também a terra. Descobriu que as nuvens soltavam pios de mar e chamou de chuva a esses pios que davam arrepio de frio. O mundo lavado o fez pensar que as palavras eram bonitas, mas que o mais das vezes o melhor era buscá-las no fundo das tripas e das fezes. A realidade é uma roda de gritos que é preciso medir e pesar. E devo ficar com tudo isso para oferecer a ninguém?

E nesta noite o homem contou outra história à mulher que insisto em chamar de silente.

Contou-lhe a história de uma caverna e de seres agrilhoados dentro dela. E disse que esses seres acreditavam que as sombras projetadas no fundo da caverna eram reais quando não passavam de imagens. E disse que ele heroicamente tinha tentado libertá-las de seus grilhões. A mulher soltou um suspiro de alívio pelos olhos enquanto pensava: desta vez não tive nada a ver com isso!

Não? O contador de histórias prosseguiu: sabe de onde vinham as sombras projetadas no fundo da caverna? De um pedaço de fogo roubado da sua lareira, mulher dos infernos, mulher do diabo! É você quem cria a possibilidade das sombras. Primeiro porque disse uma palavra através do seu nariz de vidro. Segundo porque cria a possibilidade da ilusão, do engodo, da sombra que é parida por meio do lume que você gesta.

Depois dessa segunda história a personagem mulher desistiu parcialmente do fogo e pôs-se a tecer um manto para o princípio do mundo se aquecer do frio e que desse voz encantada aos bichos ferozes e força à fúria dos elementos e faca ao sangue dos animais sacrificados. Teceu e bordou por cima do tecido uma cestinha, um rio, um menino heróico e uma princesa egípcia.

Nascia o trançado das histórias dentro da história. E o riso regalado de seres imaginariamente independentes. Se alguém levantar o dedo mindinho poderá tocar as nuvens. Faltam apenas rebordos dourados – iluminadas iluminuras - emoldurando as páginas da realidade. Mas ainda podemos ouvir, debaixo das telhas ou das lajes, o silêncio da mulher e o palrar do homem.


Por Maria do Espírito Santo Gontijo Canedo

Um comentário:

Maria do Espírito Santo disse...

Puxa, Tamba... Não sabia que você tinha posto este texto aqui...
Olha só que coisa estranha a frase: "Quando chegar os dias de chuva a terra poderá se alagar e o alagamento prejudicará as plantações."
E o que mais houve no final do ano foram chuvas, tanto aí quanto aqui em Minas...
Este tipo de "coincidência" - você sabe muito bem disso! - me põe meio "mística" ou, pelo menos, crente num certo tipo de premonição...
Mas é claro que pode ter sido apenas uma coincidência...
Uma triste e terrível coincidência...