5.7.06

O desafio de gerar, aplicar e divulgar o conhecimento científico.


A ciência e a tecnologia hoje estão tão imbricadas que já se tornou comum aplicar-lhes a sigla C&T. Essa recente associação, contudo, tende a ofuscar algumas diferenças fundamentais. A ciência, como pesquisa básica e processo racional de conhecimento, produz idéias, hipóteses e teorias, enquanto a tecnologia produz objetos e bens utilizáveis. A tecnologia possui história própria e é muito mais antiga que a ciência, originalidade do gênio grego. É tão antiga quanto a própria humanidade: da agricultura primitiva ao domínio dos metais, da engenharia chinesa às catedrais do Renascimento, seus êxitos não dependeram de ciência. Pode-se mesmo dizer que esta não teve algum impacto sobre a tecnologia até o século XIX.

As grandes catedrais, com suas enormes cúpulas e altas naves, não foram construídas com base em elaborados princípios científicos, mas por engenheiros que se valiam da experiência prática, isto é, dedicavam-se a fins práticos e não ao conhecimento. Empregava-se então uma espécie de "teorema dos cinco minutos": se uma estrutura permanecia de pé por cinco minutos depois de retirados os suportes, podia-se supor que assim permanecesse para sempre 1 . Em poucas palavras, a tecnologia é voltada para as necessidades e demandas do mercado, ao passo que a ciência busca, antes de tudo, o conhecimento como um bem em si mesmo.

O recente matrimônio entre ciência e tecnologia pode ser ilustrado com a história da comunicação radiofônica. As ondas eletromagnéticas não foram descobertas por experimentação, mas a partir das equações elaboradas pelo físico escocês Maxwell (1831-79). Em 1887, Hertz (1857-94) demonstraria a propagação de tais ondas, sem atentar, contudo, para a sua importância para as comunicações. Coube ao italiano Marconi (1874-1937) lançar as bases para seu aproveitamento industrial e comercial. Desde o final do século XIX, portanto, C&T andam de mãos dadas - com as bênçãos da indústria, que na mesma época fundaria as primeiras empresas baseadas em conhecimento científico (nas áreas de química e eletricidade).

Hoje, nada de realmente novo existe que não seja resultado da pesquisa científica. A ciência e a tecnologia revolucionam permanentemente todos os setores: social, econômico, político, militar, industrial, além de cultural e intelectual. Mas é necessário reconhecer que, apesar de todos os avanços, o modo científico de pensar ainda está longe de ser universal. A tecnologia já conquistou os corações, mas a ciência ainda não alcançou as mentes: proliferam as pseudociências, a superstição, as crendices e o charlatanismo, que mantêm grande parte da humanidade com os pés na caverna. E nem se fale na anticiência dos letrados, pretensos humanistas, cuja visão de futuro é a nostalgia de um passado idealizado.

O fato é que a cultura científica, de que o homem necessita para compreender o mundo em que vive e nele sobreviver, não se consolidou nem mesmo nos países economicamente mais avançados. Segundo a Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAS), em seu ambicioso Project 2061, são pressupostos dessa cultura: familiarizar-se com o mundo natural, reconhecendo sua diversidade e sua unidade; entender os conceitos fundamentais e os princípios científicos; perceber a inter-relação entre a matemática, as ciências e a tecnologia; levar em conta que a ciência e a tecnologia são empreendimentos humanos e, como tais, sujeitas a erros e limitações; e, finalmente, adquirir a capacidade de pensar de acordo com as exigências do rigor científico. Peculiaridades regionais à parte, no mesmo sentido caminha o Projeto 2006, recentemente lançado pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Ocorre que, diante de tais exigências, apenas 7% dos adultos britânicos ou norte-americanos podem considerar-se medianamente cultos em ciência. Menos de metade da população norte-americana sabe, por exemplo, que a Terra gira em torno do Sol uma vez por ano - isto num país que já conquistou mais de uma centena de prêmios Nobel. Claro está que um dos grandes desafios - para todos os países - é a divulgação e a compreensão pública da ciência, algo que diz respeito, em primeiro lugar, aos próprios cientistas, mas passa, também, por um incentivo ao jornalismo científico. A atividade de divulgação é tão importante quanto a produção científica e tecnológica, e não é exagerado igualar seu status para o cômputo do desempenho acadêmico do pesquisador 2. Sabe-se que a tarefa é complexa e gigantesca, implicando até mesmo uma profunda reformulação dos currículos escolares desde o ciclo básico, mas é imprescindível - o labirinto da história nos ensina, afinal, que os povos podem regredir a estados pré-científicos 3.

Os artigos publicados na revista Nexus (edição de dezembro), abrangendo amplas áreas de conhecimento (da Engenharia de Materiais à Engenharia Elétrica e Engenharia de Controle e Automação, da Tecnologia de Alimentos à Farmácia e à Química, da Administração ao Direito e às Relações Internacionais), apontam para a necessidade de uma maior integração entre universidade e empresas no enfrentamento dos desafios da indústria brasileira e na geração de novas oportunidades, tanto em C&T quanto em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

Nesse aspecto, ainda há um longo caminho a percorrer, envolvendo três agentes: o Estado, ao qual cabe gerar e aplicar políticas públicas de ciência e tecnologia, além de financiá-las; a Universidade, à qual cabe formar pessoal qualificado e criar ciência básica; e a Indústria, que deve investir na criação de tecnologia, além de realizar pesquisa aplicada, incorporar pessoal qualificado e, desse modo, ganhar competitividade.

O problema é que o setor privado tem investido pouco no desenvolvimento científico e tecnológico, em parte devido à instabilidade econômica nacional e à contínua mudança de regras. Especialistas de todo o país são unânimes em afirmar que há pouca pesquisa no ambiente empresarial. Os dados são reveladores: no Brasil, dos cerca de 90 mil cientistas e engenheiros ativos em P&D, apenas 9 mil trabalham diretamente em empresas, no desenvolvimento de produtos ou serviços, enquanto na Coréia do Sul - exemplo sempre citado entre os países de industrialização recente -, a participação chega a 75 mil.

O resultado é que a Coréia registra 1.500 patentes por ano, e o Brasil, só 56. Nos Estados Unidos, dos 960 mil cientistas e engenheiros que trabalham em P&D, 760 mil estão nas empresas (aproximadamente 80%). Já nos países que participam da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o dispêndio empresarial atinge 2/3 do investimento nacional e vem crescendo significativamente (chega a 11% ao ano na Finlândia, que ocupa o primeiro lugar no Índice de Avanço Tecnológico da ONU).

Mas é justo reconhecer que boa parte da iniciativa privada já demonstra consciência de que a inovação tecnológica é cada vez mais decisiva para que as empresas ganhem ou mantenham competitividade diante da globalização dos mercados. A propósito, uma pesquisa realizada pelo MCT e pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) junto a mil empresas, em 1997, revelou que 38% delas pretendiam investir, nos cinco anos subseqüentes, entre 2 e 5% de seu faturamento líquido em P&D, e 28% procurariam superar os 5%.

Muitas empresas - privadas, públicas ou mistas - investiram na formação de cientistas e geraram tecnologia própria. Cite-se o caso da Embraer, exemplo típico de boa parceria entre universidade e indústria, com resultados excepcionais: hoje é uma das maiores fabricantes de aviões a jato do mundo e líder nas exportações brasileiras de produtos tecnológicos, com faturamento anual próximo dos US$ 2 bilhões. Vale lembrar, também, a Petrobras, que desenvolveu uma avançada tecnologia de perfuração e prospecção de petróleo em plataformas submarinas, e a Embrapa, que, com seus 2 mil cientistas, tornou a agricultura nacional um empreendimento produtivo, com pesquisas na área de biotecnologia, técnicas de melhoramento genético e no cultivo de soja. Graças a esse trabalho, a soja e seus derivados rendem US$ 3 bilhões por ano em exportações 4.

O dado inquestionável, porém, é que a pesquisa científica continua sendo desenvolvida maciçamente nas universidades e nos institutos públicos. O sistema de ensino superior é de qualidade, embora atinja só 12% dos jovens entre 18 e 24 anos. Mas o pior problema está na base e é um dos fatores que pesaram na má classificação do Brasil no Índice de Avanço Tecnológico da ONU. O mais novo índice criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) relaciona 72 países em termos de criação e difusão de tecnologias e capacidade humana para participar nas inovações tecnológicas. Pelo baixo nível educacional dos trabalhadores, que freqüentam, em média, pouco mais de 5 anos de escola - quando a média, nos países melhor colocados, é de 12 anos -, restou ao Brasil o 43º lugar na lista (perde, na América Latina e Caribe, para Argentina, México, Chile, Trinidad e Tobago e Panamá).

Apesar de tudo, o país conta com excelentes cursos de pós-graduação, muitos de nível internacional, formando cerca de 5 mil doutores por ano. É fundamental que as empresas passem a incorporar essa massa crítica em atividades de P&D. Pois, se promover o desenvolvimento científico é um dever do Estado, incumbindo à universidade a geração e difusão de conhecimento científico, investir no desenvolvimento tecnológico é tarefa da empresa. Como resumem os pesquisadores e cientistas, falta aqui o principal parceiro.

Notas

1) Cf. os belos estudos de George Basalla (The evolution of technology, Cambridge, Cambridge University Press, 8a. ed., 1999) e de Lewis Wolpert (The unnatural nature of science, Londres, Faber & Faber, 1992).
2) A sugestão é de Carlos Vogt, diretor-executivo do Instituto Uniemp-Fórum Permanente das Relações Universidade-Empresa, de São Paulo, em "Os desafios da divulgação científica" (Newsletter, nº 21, julho/2001, Labjor-Unicamp.
3) Ver, a propósito, o livro de Lucio Russo, La rivoluzione dimenticata. Il pensiero scientifico greco e la scienza moderna, Milão, Feltrinelli, 6ª. ed., 1999.
4) Para esses dados, cf. os seguintes artigos de Carlos H. Brito Cruz, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp): "A verdadeira riqueza das nações" (Gazeta Mercantil, 16/08/2001); "Falta o ator mais importante" (Correio Braziliense, 15/04/2001) e "Boa ciência no Brasil" (Folha de S. Paulo, 22/02/2000).

Orlando Tambosi

Publicado originalmente na Revista Nexus (Florianópolis), outubro 2001, e Jornal da Ciência, da SBPC, em 21/01/2002.

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