25.4.06

Entrevista ao jornal A Tribuna

Transcrevo aqui entrevista que este escrevinhador deu ao jornal A Tribuna, de Criciúma (SC) - publicada na edição de 30/01/06 -, sobre a suposta virada à "esquerda" que estaria ocorrendo na América Latina.

Filósofo fala sobre direita e esquerda

Gladinston Silvestrini
da Redação

No período entre dezembro de 2005 e dezembro de 2006, mais de nove países latino-americanos escolhem seus presidentes pelo voto direto. Os primeiros deles foram Bolívia - onde venceu o líder indígena e cocaleiro Evo Morales - e o Chile, que elegeu a socialista moderada Michele Bachelet. Com Lula no Brasil e Hugo Chávez na Venezuela, analistas internacionais vêm dizendo que o continente vive uma fase "esquerdista". Para o filósofo e jornalista Orlando Tambosi, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), isso pouco corresponde à realidade. Ele dedicou parte dos últimos dez anos estudando o que, afinal de contas, deu errado no velho marxismo de sua geração, e sobre que sentido faz, no mundo contemporâneo, falar da distinção entre esquerda e direita. Sobre o assunto, ele publicou no Brasil o livro O declínio do marxismo e a herança hegeliana. (O livro foi traduzido na Itália pela maior editora do país, a Mondadori, e ganhou título bem mais direto: Perché il marxismo ha falitto, ou Porque o marxismo faliu). Na seguinte entrevista ele fala sobre esquerda e direita na América Latina, política no Brasil e sobre a lei de imprensa - seu blog, inaugurado há poucos meses, foi o primeiro do gênero a publicar um direito de resposta a pedido baseado na Lei de Imprensa, que Tambosi qualifica como "entulho autoritário".

A Tribuna - Entre dezembro de 2005 e dezembro de 2006, nada menos que nove países da América Latina terão eleições presidenciais. Já foram eleitos o indígena Evo Morales na Bolívia e a socialista Michele Bachelet no Chile. Com Hugo Chavez na Venezuela e Lula no Brasil, há analistas que dizem que o continente vive uma fase de esquerda. Faz sentido por todos esses presidentes no mesmo barco? Há algo em comum entre eles?

Orlando Tambosi - “A tendência do cocaleiro Evo Morales é encostar-se a Hugo Chávez, que é um personalista, autoritário, demagogo e virtual dono da Venezuela. Já faz algumas bravatas, como a nacionalização de algumas empresas (entre elas as da Petrobras), mas não creio que vá muito longe. A Bolívia vive em crise há décadas e é possível que Evo seja tragado na milésima crise. Michele Bachelet, por sua formação, nada tem em comum com os dois, nem em termos biográficos, nem em termos políticos. Tocará a economia chilena pragmaticamente, como fizeram seus antecessores, também socialistas, que não estatizaram nada e nem se meteram em estripulia, como Chávez.”A Tribuna - Nesta semana, lideranças populares disseram no Fórum Social Mundial que Lula prejudicou a esquerda mundial com o seu governo sendo classificado como uma guinada para a direita. Há algum sentido nessa afirmação?OT - “Que esquerda mundial é esta? Isto não passa de uma utopia. As esquerdas sempre foram divididas em termos nacionais, que dirá em termos globais! O Fórum representa movimentos de variada origem, de ecologistas a anti-globalistas, e jamais terá alguma unidade, a não ser no vago discurso anticapitalista. Em termos práticos, os encontros promovidos anualmente mostraram-se inócuos até agora. Basta lembrar o exemplo de Porto Alegre, onde se realizou o primeiro encontro (quando o PT ainda governava o Estado e a capital). O que restou? Discursos, manifestos etc. Quanto a Lula, não fez guinada nenhuma. Age como o sindicalista pragmático que sempre foi. Apenas prosseguiu - mais ortodoxamente, é verdade - a política econômica de FHC. No resto, o governo do PT apenas inovou numa coisa: a corrupção, que tornou sistêmica. O valerioduto que o diga.”

A Tribuna - Nas últimas eleições, ainda havia parcela do eleitorado que votou em Lula por ele ser de "esquerda". Nas reeleições do ano que vem, este será um argumento válido? Houve algo diferente nesse governo que possa qualificá-lo, de alguma forma, de ser mais à esquerda que FHC?

OT - “Se FHC era neoliberal, então Lula também é. Lula foi eleito para mudar, mas limitou-se a prosseguir a herança de FHC, apesar de chamá-la de maldita. Na verdade, ele e seu partido não tinham projeto algum. Como se diz - corretamente - tinham um projeto de poder, mas não de governo. Aparelharam o Estado e pretendiam ficar muito tempo no poder, inclusive comprando deputados no Congresso, praticando um fisiologismo pior que aquele que sempre condenaram no discurso.”

A Tribuna - Ao longo da história, o termo "esquerda", sempre foi uma noção fluida. Nestas eleições, como essa questão se coloca diante do eleitor brasileiro?

OT - “Você tocou num ponto importante: será que a distinção entre esquerda e direita sobrevive? Os italianos foram os primeiros a discutir isto, no início dos anos 90, depois do desmantelamento da União Soviética e da derrubada do Muro de Berlim. O filósofo Norberto Bobbio escreveu um livro sustentando que a díade (como ele chamava) não morreu. Esquerda e direita teriam uma posição diferente em relação à igualdade, sendo a primeira igualitária e a segunda, inigualitária. Este seria, segundo Bobbio, o critério de distinção entre uma posição e outra. A esquerda teria uma sensibilidade maior para a redução das desigualdades. Do lado oposto ao de Bobbio colocou-se outro filósofo, Lucio Colletti, para quem não tinha mais sentido falar-se em esquerda e direita depois do fim da União Soviética e da falência do chamado "socialismo real". Até então o que era "direita"? O liberalismo, a defesa da economia de mercado, a livre concorrência, a não invasão do Estado na economia. E o que era "esquerda"? A propriedade coletiva ou pública dos meios de produção, a nacionalização (estatização) das grandes empresas e dos bancos, a economia dominada, dirigida pelo Estado (lembre-se os famosos "planos qüinqüenais" da URSS). Hoje tendo a concordar mais com Colletti. Se a noção antes era vaga e fluida, como você mesmo diz, atualmente ela se tornou nebulosa. Alguém ainda chamará de "esquerda" a ditadura cubana, só porque mantém tudo sob rígido controle estatal? E alguém dirá que os Estados Unidos, com sua liberdade de mercado e seu capitalismo, simbolizam a "direita"? Considerando-se esses argumentos, como dizer que Lula estaria mais à esquerda do que FHC?”

A Tribuna - Você acha que, no atual momento da política brasileira, corremos o risco de dar de cara com um aventureiro, como foi Collor?

OT - “No Brasil, a luta deverá se dar entre Serra e Lula, conforme apontam as pesquisas. Serra estaria mais à direita que Lula? Claro que não, até pela biografia de ambos. Diria até que Serra - mantida a tal díade - está mais à esquerda que o sindicalista. Acho que não corremos o risco de ter um novo Collor. Os personagens do cenário estão aí, são conhecidos, e não parece haver nenhum terceiro correndo escondido. O que é preciso fazer, mais do que analisar as coisas nos velhos termos de esquerda e direita, é analisar os projetos dos candidatos, trocar promessas por propostas. E propostas calcadas em estudos científicos, não em catecismos ideológicos.”

A Tribuna - A crise do PT pode ter alguma origem na raiz marxista do partido? Criou-se o mito de que José Dirceu fez o que fez por ser "stalinista". Faz sentido?

OT - “Olha, o PT não tem nem nunca teve raiz marxista. Para dizer a verdade, acho que poucos petistas estudaram Marx a fundo, e o Dirceu, que você cita, não é um deles. O pobre Marx não pode ser responsabilizado pelo autoritarismo petista, pelo menos disto ele está livre. Dirceu tem uma personalidade autoritária e é um centralizador, o que faz lembrar as práticas stalinistas. Se pudesse, certamente seria um ditador como seu amigo Fidel Castro. Mas ainda bem que já estamos livres desse personagem, espero que por muito tempo.”

A Tribuna - Como foi inaugurar a aplicação da lei de imprensa para blogs?OT - “Publiquei em meu blog (http://otambosi.blogspot.com) uma resenha do professor e amigo Roberto Romano, da Unicamp, sobre o livro "Formação do império americano", de Moniz Bandeira, que foi publicada também na revista Primeira Leitura, de São Paulo. O autor do livro não gostou da resenha, achando-a injuriosa, e surpreendeu-me com uma representação, por meio de um escritório de advocacia com várias filiais internacionais, pedindo "direito de resposta" com base na Lei de Imprensa (o famoso entulho autoritário, de l967). Ouvi amigos ligados ao Direito e achei melhor publicar a resposta, coisa que, aliás, teria feito por um simples pedido do professor Moniz, contra quem nada tenho. A Primeira Leitura não publicou nem publicará (segundo artigo do diretor, Reinaldo Azevedo, no site da revista) a resposta, preferindo que Moniz vá até o fim, já que tomou esta "atitude truculenta" (palavras do Reinaldo). Veja bem, se é inédito o uso da vetusta Lei de Imprensa contra um blog, mais ainda é usá-la a pretexto de uma resenha. Resenha de livro é análise e crítica de idéias e argumentos, não ataque a pessoas. Trata-se de um conflito de idéias e interpretações, que nada tem a ver com a Lei de Imprensa. Acho o episódio lamentável, ainda mais por ter partido também de um professor. Moniz aposentou-se na UNB e hoje mora na Alemanha - foi certamente através do blog que tomou conhecimento do texto do Romano, já que a PL não disponibiliza o material da revista na internet, embora mantenha um site, com o mesmo nome, de atualização diária.”
Publicado: 30/1/2006

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