25.4.06

Uma fábula hegeliana


Texto publicado originalmente no Blog do Tambosi.

Roberto Romano, professor de Filosofia política e ética da Unicamp, analisa as idéias de Moniz Bandeira (Luiz Alberto), professor titular aposentado de História da Política Exterior do Brasil na Universidade de Brasília e autor de várias obras sobre as relações dos EUA com o Brasil e os demais países da América Latina, entre as quais O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil - 1961-1964, e De Martí a Fidel: a revolução cubana e a América Latina. Romano aborda especificamente o último livro de Moniz Bandeira, Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra do Iraque (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005). Bandeira, que se considera ao mesmo tempo "hegeliano" e "cientista", é figura apreciada no Itamaraty terceiro-mundista do governo Lula. Não esconde seu antiamericanismo vulgar - em favor do qual chega a brandir teorias conspiratórias em relação ao 11 de setembro -, é indulgente com Hitler e acusa os Estados Unidos de tentarem impor uma ditadura planetária. Eis aí, argumenta Romano, "uma perigosa coincidência entre a tese central do livro em pauta e o discurso totalitário: os EUA querem impor uma ditadura sem limites ao mundo."

O artigo do professor Roberto Romano, aqui publicado com autorização do autor, está na edição de dezembro da revista Primeira Leitura. (Na ilustração, o sisudo filósofo idealista alemão G.W.F. Hegel [1770-1831], que ainda tem seguidores no BR).

A FORMIGA QUE MARCHAVA CONTRA O IMPÉRIO.
UMA FÁBULA HEGELIANA
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Francis Bacon distinguia entre formas lucíferas e frutíferas de pesquisa. As primeiras, por atingir paragens elevadas do intelecto, levam à ciência. As segundas perdem importância na hora do consumo. Paolo Rossi (1) recorda as imagens usadas pelo suposto empirista para descrever os vários tipos de intelecto. Em primeiro, acadêmicos formiga: recortam dados indefinidamente sem processá-los no pensamento. Depois chegam os aranha que tecem silogismos sem base efetiva no mundo. Como descartaram os dados, eles vivem suspensos em sistemas filosóficos. Finalmente, com base em Platão e poetas como Horácio, vem o pesquisador abelha que recolhe o néctar das flores (os dados), o elabora e entrega um belo e alimentício produto, o mel.

Os “sábios” europeus e seus herdeiros desprezam a filosofia anglo-saxã. Esquecem a lição de I. Kant, cuja honestidade proclama que sem Hume o sono dogmático dominaria a sua mente. Não por acaso Bacon é citado na Critica da Razão Pura: “calamos sobre nós mesmos, falamos sobre as coisas”. Hegel é um charlatão a mais a espalhar preconceito contra a cultura inglesa. O mesmo Hegel, no seu doutoramento, errou uma citação essencial de Newton (2) mas disse sem pudor algum : “Newton é pensador tão bárbaro no plano conceitual que, à semelhança de outro inglês, se espantou ao descobrir que falava em prosa. Quando imaginava manipular coisas físicas, Newton não tinha consciência de usar conceitos”(3).

Luiz Alberto Moniz Bandeira se proclama hegeliano. Dados os elementos acima, acredito. Ele afirma ser preciso “penetrar no âmago dos acontecimentos, conhecer a causa e a essência dos fenômenos, o que é real e racional por trás da aparência”. O jargão escolástico foi dado. Vejamos as conseqüências. Bandeira segue a lógica do mestre, aplicando-a sem cautelas ao mundo histórico. Aliás, trata-se de um estranho hegelianismo que amontoa fatos empíricos e teses a priori, sem que os dois elementos se unam. Em muitas páginas o autor mimetiza a formiga baconiana e acumula dados, mas não os pensa. Ao mesmo tempo, insiste em esquemas paranóides que anunciam uma indemonstrada “ditadura mundial do capital financeiro”. E a salada empírico-transcendental vem recheada de “denúncias” que, sem exagero, atribuem ao governo norte-americano plena cumplicidade com o ataque de 11/setembro. Essas histórias fantásticas recordam invenções como o Protocolo dos Sábios de Sião. Mas vamos por partes. O livro começa errando e termina do mesmo jeito. Nele se fala em “fundamentalismo” dos founding fathers americanos. Ignorância pura. Se tivesse lido uma linha dos ditos senhores, Bandeira saberia que eles estudavam teologia em bases tão rigorosas quanto as obedecidas pelos teóricos europeus. A filosofia, a teologia, a retórica, a lógica de Petrus Ramus, a panóplia conceitual sofisticada movida por eles, tudo somado a um saber científico e literário de fazer inveja à Sorbonne, mostram que de “fundamentalistas” eles nada possuem (4). Caso oposto, inexistiriam as universidades norte-americanas produtoras de amplos saberes científicos, técnicos, humanísticos. Mas não se espera sutileza teológica de alguém que escreve ser Jesus apologista do “não pagamento de tributo ao César”. Erro feio demais para ser apenas erro(5). O autor, para fundamentar sua “tese” sobre o terror (6), apela com singeleza a certo Cristo inscrito na guerrilha e …no terror “libertário”. Assim fala o hegeliano: se os dados históricos e textuais negam a lógica assumida, danem-se eles.

ANTIAMERICANISMO
Bandeira assume o mais vulgar antiamericanismo, e cita oráculos franceses que descrevem os EUA como “esse povo do qual todas as forças vivas são dirigidas pelo excesso no crescimento indefinido dos bens materiais” (Joseph Patouillet, 1904). Se é para catar preconceitos, porque não descer à base do etnocentrismo europeu defendido por De Pauw ? Este, nas Pesquisas sobre os Americanos (7), afirma serem podres o povo e a terra daquele continente. Mas a lógica hegeliana é conhecida por seus truques. Bandeira, bom hegeliano, transforma “a parte” num todo. Ele cita Aron, para quem os norte-americanos possuem “uma parte da responsabilidade no desencadeamento da guerra dupla no Atlântico e no Pacífico”. Daí, o autor passa ao “notável” Gore Vidal (retórica das seitas: os “nossos” são notáveis, os “outros” recebem adjetivos impublicáveis) : “hoje, ninguém nega com seriedade que Roosevelt queria a guerra dos EUA contra Hitler”. Para mim, se Hitler declarasse guerra ao inferno, eu também me aliaria ao diabo. Mas para Bandeira, não. A beligerância contra Hitler é crime. Ele cita Hitler com indulgência, num discurso contra “a ilimitada ditadura mundial norte-americana”(8). Encontra-se aí uma perigosa coincidência entre a tese central do livro em pauta e o discurso totalitário: os EUA querem impor uma ditadura sem limites ao mundo.

Hitler é citado pelo autor como personagem neutro. Semelhante técnica de citação chega a ser escandalosa. Veja-se a seguinte seqüência: “Hitler considerou um ´trágico encadeamento´(eine tragische Verkettung), um ´infeliz acaso histórico´(ein unglücklicher geschichtlicher Zufal) o fato de que sua ascensão ao poder na Alemanha ocorreu quando ´o candidato do mundo judaico´(der Kandidat des Weltjudentums), Roosevelt, assumiu o governo da Casa Branca”. No juízo do hegeliano só está errado nesta série de frases o fato de que “Hitler se precipitou”, nada mais. Ao expor a fabricação de armas, Hitler é novamente citado num discurso como alguém que só denuncia os instrumentos letais nas mãos norte-americanas. Em passagem rápida a “política” nazista é referida com as suas “enormes atrocidades”. Mas logo o autor tira a lição silogística: se Hitler dizimou o povo russo, este “logicamente” apoiou Stalin e a sua tirania.

Num texto que defende a tese de uma ditadura mundial maquinada pelos EUA e onde o leitor é forçado a topar com certo Hitler estadista sóbrio, é no mínimo bizarro que o autor cale quase tudo o que se relaciona com o tema jurídico da ditadura, os debates sobre o artigo 48 da Constituição de Weimar (9). O dilema do autor, com tal silêncio, é claro: se os EUA têm uma Constituição democrática, neles não haveria a legalidade da qual se beneficiou Hitler. Se os EUA seguem para uma ditadura nos moldes do artigo 48 (existem pessoas que pensam desse modo), então aprenderam com a Alemanha. E seria preciso, para denunciar o imperialismo yankee, descer ao parentesco com a “civilizada” Alemanha.

Quando se fala em “império” e “ditadura mundial”, tais asserções entram na polissemia lingüistica, elas não brotam de “fatos” a exemplo de Minerva da cabeça jupiteriana. É preciso interpretar documentos e dados com óptica plural. Em pontos delicados assim, o preceito da justiça é imperativo: quem julga tem o dever de ouvir a outra parte. Não se encontra um norte-americano defensor de sua terra e gente, nas oitocentas páginas do calhamaço. Fico no caso mais notório, pois trata-se de um filósofo especialista em estratégica militar. Trata-se de Victor Davis Hanson(10). Além dos que dizem cobras e lagartos dos EUA, ralas são as referências aos seus defensores idôneos. Todo país possui valores negativos e positivos. Mas o autor afirma trabalhar sine ira et studio e que não faz reflexão ética, só expõe uma cadeia de fatos. É preciso dizer que, entre os fatos a serem levados em conta pela razão científica, em se tratando de política e não de matemática ou física (e mesmo aí Hegel errou…), a boa lógica exige o exame dos arrazoados trazidos pelos que defendem o campo “inimigo”.

Outros equívocos, agora de leitura filosófica, surgem ao longo do livro. Todo estudante de primeiro ano conhece a passagem da Fenomenologia do Espírito sobre “o Reino animal do Espírito”. Baseando-se numa leitura não provável de Marx, Bandeira reduz o significado daquele trecho, jogando-o totalmente sobre a sociedade de mercado e para a concorrência. Hegel era tosco, mas nem tanto. A seqüência inteira é dirigida aos intelectuais, parte essencial das Luzes. Para quem analisa a ditadura mundial estadunidense talvez o erro seja pequeno. Mas para um hegeliano…

Em suma: em tedioso agenciamento de números, documentos e discursos, como diligente intelectual formiga, o autor exibe sua riqueza, a qual constrasta com a miséria de uma ideologia raivosa que não hesita em repetir slogans anti-semitas ao discorrer sobre o Partido Democrático, além de outras repetições de enunciados totalitários cujo lugar deveria ser debaixo do rio chamado Esquecimento. Bandeira se proclama hegeliano e nele acredito. Ele também diz só levar em conta “os fatos, como cientista”, abandonando todo esforço axiológico. Assim, os “fatos” terroristas são coletados como se fossem apenas… fatos. Mas eles expressam juízos de valor e definem uma prática covarde de intimidação, ao jogar sociedades inteiras na morte aninhada nos ventres fanáticos. Sim, Bandeira é hegeliano e diz levar em conta os fatos. “Mas quem aprendeu antes a curvar as costas e inclinar a cabeça diante da ´potência da história´, acaba acenando mecanicamente, à chinesa, seu ´sim´a toda potência, seja esta um governo ou uma opinião pública ou maioria numérica, e movimenta seus membros no ritmo preciso com o qual alguma ´potência´puxa os fios. Se todo sucedido contém em si uma necessidade ´racional´, se todo acontecimento é o triunfo do lógico ou da ´Idéia´ —então, depressa, todos de joelhos e percorrei ajoelhados toda a escada dos ´sucedidos´! Como, não heveria mais mitologias reinantes? Como, as religiões estariam à morte? Vede apenas o religião da potência histórica, prestai atenção nos padres da mitologia das Idéias e em seus joelhos esfolados” (Considerações Extemporâneas). Nietzsche falava, nestas frases, dos hegelianos. Enquanto eles, agora, apresentam a imagem mais horrenda dos EUA, “inclinam a cabeça à chinesa”, literalmente. Na cena mundial, depois do nazismo e da URSS, sobraram os EUA, a UE e a China. Não aposto um centavo para saber em qual país Bandeira enxerga razões para solapar o Estado norte-americano. Não gosto de inclinar a espinha diante da História, mesmo ainda contada no padrão idealista.

NOTAS
1) "Ants, Spiders and Epistemologists", in Francis Bacon, Seminario Internazionale, ed. Marta Fattori, Roma, 1984.
2) “Quando Hegel cita a definição quinta dos Principia de Newton como uma definição da força centrífuga, seu erro tem graves consequências pois invalida quase toda a crítica de Newton feita por ele; o mais incômodo é que ninguém notou o erro no ato e Hegel repetiu publicamente o mesmo erro (por exemplo na Encliclopédia das Ciências Filosóficas, § 266) até o fim da vida”. De Gandt, F: “Introdução” à edição da tese De orbitis planetarum (Paris, Vrin, 1979), p. 47.
3) Leitor amigo: se deseja rir mais, abra as Lições sobre a História da Filosofia no item “Newton”. Cito na edição seguinte: Werke in zwanzig Bänden (FAM, Suhrkamp, 1975), III, p. 231. Hegel inicia o método Chaui de leitura científica.
4) Da imensa bibliografia, cito apenas Miller, Perry: The Americans Puritans, their prose and poetry. (NY, Doubleday, 1956) e The New England Mind. The Seventeenth Century (Boston, Beacon, 1968).
5) Pergunta: Licet censum dare Caesari, an non?. Resposta: Reddite ergo quae sunt Caesaris, Caesari: et quae sunt Dei, Deo. (Mateus, 22, 17-21).
6) A benção ao terror repete-se, como cantilena, em muitas passagens : “…quando as grandes potências desprezam a força do Direito e impõem o direito da força, os povos mais fracos, oprimidos, são levados a recorrer ao terrorismo, como ferramenta de luta, no processo de insurgência”, “no curso da história, o terrorismo serviu como a arma dos mais fracos, com o objetivo de quebrar o monopólio da violência exercida pelo Estado e, no mais das vezes, identificou-se com a insurgência, o método da guerrilha”, e outras jóias de mesmo quilate.
7) C. De Pauw, Recherches philosophiques sur les Américains, 1774. O texto pode ser lido na edição eletrônica Gallica da Biblioteca Nacional da França.
8) O termo germânico é preciso: “…unbegrenzte Weltherrschaftsdiktatur”. Discurso de Hitler em 11/12/1941.
9)"Caso a segurança e a ordem públicas forem seriamente (erheblich) perturbadas ou feridas no Reich alemão, o presidente do Reich deve tomar as medidas necessárias para restabelecer a segurança e a ordem públicas, com ajuda se necessário das forças armadas. Para este fim ele deve total ou parcialmente suspender os direitos fundamentais (Grundrechte) definidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124, and 153."
10) Cf. Carnage and Culture (Anchor/Vintage, 2002), tradução com o título de Porque o Ocidente Venceu. Massacre e cultura- da Grécia antiga ao Vietnã (RJ, Ediouro, 2001). O autor publicou muitos outros livros e artigos sobre a Grécia antiga e a Guerra, incluindo a questão da democracia. Dentre os mais importantes, listo os seguintes: Warfare and Agriculture in Classical Greece (Ed. University of California Press, 1998); The Western Way of War (University of California Press, 2000); Hoplites: The Ancient Greek Battle Experience (Routledge, 1992); The Other Greeks: The Family Farm and the Agrarian Roots of Western Civilization (Ed. University of California Press, 2000); Fields without Dreams: Defending the Agrarian Idea (Ed. Touchstone, 1997); The Land Was Everything: Letters from an American Farmer (Free Press, 2000); The Wars of the Ancient Greeks (Cassell, 2001); The Soul of Battle ( Anchor/ Vintage, 2000); An Autumn of War (Anchor/Vintage, 2002); e Mexifornia: A State of Becoming (Encounter, 2003).

COMENTÁRIO: este ensaio, por força da Lei de Imprensa, invocada pelo prof. Moniz Bandeira, tem réplica publicada abaixo, como DIREITO DE RESPOSTA.

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