3.7.06

Revolução, um anacronismo.

Reproduzo abaixo artigo do Prof. Héctor Ricardo Leis, publicado hoje no jornal O Estado de S. Paulo (03/07/2006), que aponta a permanência da idéia de revolução em setores da "esquerda" como um anacronismo. "O desafio da política no século 21", diz ele, "se dá exclusivamente dentro dos marcos da democracia representativa e do Estado de Direito."

Esquerda, por que esquecer a história?

Héctor Ricardo Leis

A presença da esquerda na história traz um problema de interpretação: são tantas e tão contraditórias as suas expressões que, como categoria, perde a coerência. Assim, o militante de esquerda contemporâneo tem de, constantemente, recorrer à teoria em busca das definições que o protejam do caos da história. Acontece que a esquerda deixou de ser um problema teórico há tempos e se constitui, como vivência, em questão de ordem prática-existencial para muitos de seus atores.

Enquanto as experiências predominantes da esquerda do século 19 foram basicamente reformistas e de resistência, no século 20 houve um ponto de inflexão: a marca deixada pelas revoluções iniciadas na Rússia pelos bolcheviques, em 1917. As bases políticas, sociais e culturais da esquerda foram alteradas em nome do movimento revolucionário, identificado com o marxismo-leninismo e suas variantes stalinistas, maoístas, castristas, etc. Novo significado foi dado à esquerda pelas idéias e práticas revolucionárias, abandonando o campo da democracia, que passou a ser entendida como claro instrumento do capitalismo.

Marx interpretava episódios históricos primeiro como tragédia e depois como comédia. Hoje o problema não são as revoluções concretas e objetivas, mas sua idéia ou desejo. Derrotadas as revoluções, esse desejo se mantém, transmutado e escondido no imaginário de atores da esquerda. A América Latina ilustra este ponto: temos quatro tipos de esquerda no poder. A esquerda revolucionária cubana, velha sobrevivente do século 20, e a esquerda democrática chilena, que avança com coragem no século 21, sem abandonar suas raízes humanistas do século 19. Entre esses dois extremos, duas esquerdas populistas em contexto democrático: uma mais marcada pela idéia de revolução, como a de Hugo Chávez, Evo Morales e Néstor Kirchner, e outra menos, como a de Tabaré Vázquez e Lula.

Voltando na história, para o congresso do Partido Social-Democrata russo em 1903, como registrou Isaiah Berlin em As Idéias Políticas no Século XX, notamos que emergiu, então, a posição que viria a se tornar emblemática para as forças de esquerda do século 20. Posadovsky, um delegado, perguntou se a ênfase colocada por Lenin na autoridade absoluta do Comitê Central não seria incompatível com as liberdades fundamentais, em cuja conquista o socialismo estaria empenhado. Plejanov, figura venerada do marxismo russo de então, deu a resposta e anunciou claramente o espírito de época, que assolaria o século 20: se a revolução o exigisse, tudo deveria ser sacrificado - democracia, liberdade, direitos do indivíduo, vistos, aliás, como princípios liberais burgueses.

O humanista Plejanov abandonaria posteriormente essa posição, mas o século e o centro geopolítico da revolução tinham mudado. A bandeira do despotismo transgressor, que estava fora do horizonte intelectual e político da esquerda européia ocidental do século 19, entrou para esse horizonte no século 20.Muitos anos após a implosão do bloco comunista soviético, a idéia de revolução ainda não foi jogada no lixo da história pela esquerda em seu conjunto. Continua presente no imaginário, justificando e orientando, de forma mais ou menos encoberta segundo os casos, a ação política dos atores. O Brasil não é o caso mais extremo, mas a idéia de revolução está presente no subconsciente de muitos. Ter sido revolucionário no passado, por exemplo, tem sido usado para desqualificar acusações, no presente, a muitos dos envolvidos no escândalo da corrupção no PT, como Dirceu, Genoino, Delúbio. A tolerância de numerosos órgãos do Estado com as violações às leis em vigor por parte de atores definidos como revolucionários, como é o caso do MST, é outro exemplo. Aliás, a impunidade aí estampada contribuiu como estímulo ao MLST na sua incursão criminosa, mas vendida como revolucionária, no Congresso. A questão revolucionária, portanto, foi retirada do debate, mas continua ativa como modalidade de ação política dentro da democracia.

A revolução representa um problema que não deriva tanto de seus triunfos ou fracassos na dimensão histórica, mas de suas surpreendentes vitórias no campo existencial. Hannah Arendt, no livro Sobre a Revolução, ajuda a entender a peripécia dos revolucionários. “O problema tem sido sempre o mesmo: aqueles que foram à escola da revolução aprenderam e souberam antecipadamente qual o rumo que uma revolução deve tomar. Foi o rumo dos acontecimentos. (...) Eles tinham adquirido a habilidade de representar qualquer papel que o grande drama da história lhes viesse a atribuir e, se mais nenhum papel estivesse à sua disposição, a não ser o de vilão, estavam mais do que desejosos de aceitá-lo, antes que permanecer fora da peça. (...) Há certo grandioso absurdo no espetáculo destes homens (...) submetendo-se, freqüentemente, de um dia para o outro, com humildade e sem um grito sequer, à chamada da necessidade histórica, por mais louco e incongruente que lhes deva ter parecido o aspecto exterior desta necessidade. Eles foram logrados não pelas palavras de Danton, de Robespierre e de Saint-Just e de todas as outras que lhes soavam aos ouvidos; foram logrados pela história e se tornaram os loucos da história.”

O desafio da política no século 21 se dá exclusivamente dentro dos marcos da democracia representativa e do Estado de Direito. Ambos os contextos podem ser retrabalhados à vontade, tal como conservadores, liberais e social-democratas vêm fazendo com diferenças ao longo da história. Mas as regras são essas e a anacrônica permanência residual da revolução só dificulta as coisas para a esquerda. O marxismo do século 20 derrapou para a aventura, comprometendo o futuro de muitos atores que se reconhecem nessa herança e que, assim, perderam todo um século.

Héctor Ricardo Leis, cientista político, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Instituto Millenium. Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 03/07/2006.

Um comentário:

Anônimo disse...

Se não fosse uma leitura focada no social, poderia perfeitamente passar-se por anamnese médica de José Dirceu, José Genoíno e outros, como o próprio texto diz.